Folha de S. Paulo


editorial

Realidade brutal

A intensa e justificada indignação que se seguiu ao estupro de uma jovem de 16 anos no Rio, revelado há duas semanas por um vídeo na internet, levou o poder público a seguir o roteiro típico das grandes comoções: improvisam-se declarações desinformadas e propõem-se medidas que passam longe de enfrentar o problema.

Os senadores, por exemplo, aprovaram um projeto que amplia a pena para o estupro coletivo (cometido por mais de uma pessoa).

O governo federal, por sua vez, lançou um plano genérico, que prevê a criação de um núcleo de cooperação com Estados e municípios, um protocolo de atendimento às vítimas e o compartilhamento de informações sobre agressores.

Especialistas logo apontaram as fragilidades da iniciativa, sem prazo para entrar em vigor nem custo estimado.

A maior falha, porém, está no fato de tais propostas nem resvalarem nos problemas principais: a falta de estrutura para recebimento de denúncias e a inaceitável impunidade dos estupradores.

Tome-se o caso de São Paulo, retratado por reportagem desta Folha. Na capital, existem nove delegacias da mulher. Nenhuma delas se situa nos dez distritos onde se registram mais estupros.

Uma simples decisão administrativa facilitaria a vida de muitas vítimas, já violentadas por um crime que lhes impõe medo e vergonha.

Ainda seria pouco, contudo. As mulheres, nas delegacias, precisariam ser recebidas por profissionais bem preparadas e num ambiente protetivo -mas, na realidade, em geral encontram homens despreparados, não raro grosseiros e preconceituosos, sem que lhes seja oferecido um mínimo de segurança mesmo durante depoimentos.

Entende-se assim por que existe tamanha subnotificação de violência sexual. No Brasil, registraram-se quase 48 mil estupros em 2015, mas se estima que o número real esteja entre 150 mil e 500 mil pessoas por ano.

Vencer essa dolorosa barreira inicial representa pouca garantia de sucesso nas etapas seguintes. Exames de coleta de provas, por exemplo, no mais das vezes são feitos em salas inapropriadas e com equipamentos improvisados.

Segundo documento obtido por este jornal, nos 65 IMLs (Institutos Médicos Legais) do Estado mais rico do país estão em funcionamento apenas dois aparelhos para realização do devido teste sexológico.

Dados tantos obstáculos, não surpreende que em São Paulo só 20% das denúncias de estupro cheguem à Justiça -onde, infelizmente, a visão machista difusa na sociedade opera a favor dos agressores.

Modificar essa realidade brutal sem dúvida depende de uma cadeia complexa de ações, mas alguns passos são de fácil execução, como comprar equipamento ou instalar delegacias em locais estratégicos.

Resta saber por que os governos continuam reagindo apenas na base do improviso.


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