Folha de S. Paulo


editorial

O papa e o patriarca

Um encontro de apenas duas horas, como o realizado na sexta-feira (12) entre o papa Francisco e o patriarca ortodoxo russo Cirilo, não poderia reverter um passado de controvérsias e atritos que se estende por quase um milênio.

A Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa se separaram em 1054, quando se deu a mútua excomunhão de suas cúpulas –no evento conhecido como Grande Cisma do Oriente.

A resistência ao comando centralizado de Roma, por parte dos cristãos do Império Bizantino, somou-se a divergências doutrinárias acerca de temas tão variados quanto a existência do purgatório e a exigência do celibato sacerdotal.

Dentro desse panorama multissecular de desencontros, uma nova fonte de dificuldades, desta vez interna aos quadros do cristianismo ortodoxo, também se manifesta.

Esforços de aproximação entre o Vaticano e um setor do culto oriental têm sido registrados há bastante tempo, no que comentadores católicos afirmam ter sido um insistente projeto do papa João Paulo 2º.

Foi assim que o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu 1º, quebrou um tabu de quase mil anos ao presenciar a missa que entronizou Francisco, em 2013.

Mais numerosa e influente do ponto de vista político, a Igreja Ortodoxa Russa tinha-se mostrado refratária a tais iniciativas.

Em consonância com longa tradição de autonomia cultural, a atitude parecia conjuminar-se à estratégia do presidente russo Vladimir Putin, cioso de expandir as áreas de influência de seu país contra os processos de "ocidentalização" e "europeização" de nações antes submetidas à hegemonia soviética.

É particularmente delicada, sob esse prisma, a situação dos católicos na Ucrânia.

Ao mesmo tempo, as ameaças do fundamentalismo muçulmano, assim como o engajamento de Putin na luta contra a facção extremista Estado Islâmico, tendem a facilitar um diálogo mínimo entre o papa e o patriarca russo: é na qualidade de cristãos, antes de mais nada, que fiéis de ambas as igrejas têm sido perseguidos e mortos.

Diversas camadas de história, portanto, se sobrepõem no encontro dos dois líderes religiosos, do qual resultou um comunicado que soube, com habilidade, mencionar os mais importantes tópicos dessa complexa conjuntura.

Qualificar de "histórica" a breve conversa entre o papa Francisco e o patriarca Cirilo talvez seja exagerado, dadas as dimensões seculares do cisma –mas a simbologia do encontro só se torna mais eloquente quando se pensa no quanto este demorou para ocorrer.


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