Folha de S. Paulo


Jessica Carvalho Morris e Laura Waisbich

Itamaraty e Guantánamo

O Itamaraty sabe tergiversar. Apesar da insistente pressão por parte da sociedade civil, o ministério não havia se posicionado clara e publicamente sobre a possibilidade de abrir as portas do país às pessoas detidas ilegalmente na prisão americana de Guantánamo, símbolo das violações cometidas em nome da chamada "guerra ao terror". O silencio foi quebrado em janeiro.

Em matéria publicada pela Folha ("Exigência de monitoramento fez Brasil não aceitar presos de Guantánamo", Mundo, 22/1), o órgão afirma em nota que abandonou as negociações sobre uma eventual transferência de detentos por considerar que as exigências impostas pelo governo americano violavam os direitos dessas pessoas, como a vigilância permanente e as restrições de movimento. A chancelaria acertou no raciocínio, mas errou feio na decisão.

Dos 91 homens que permanecem no complexo, 34 já estão "liberados para a transferência". Isso significa que seus casos foram analisados por uma comissão interministerial (incluindo órgãos de inteligência como a CIA e o FBI) e que, por decisão unânime, já não são considerados suspeitos de nenhum crime pelos EUA. A pergunta imediata: por que não estão soltos? Quando o assunto é Guantánamo, nada é obvio.

A maior parte dos entraves foram colocados pelo Congresso americano. Ele determinou que qualquer pessoa que tenha passado pela prisão está proibida de entrar no território americano. Já o Executivo impôs moratória ao retorno de iemenitas ao seu país, e eles são maioria no grupo de liberados para transferência. Sem opções, esses homens permanecem detidos indefinidamente, esperando pelo reassentamento solidário em outros países.

Encontrar uma solução humanitária para o impasse de Guantánamo passa, portanto, por colocar a libertação dessas pessoas em primeiro lugar. Não é possível fechar uma prisão enquanto suas celas estiverem cheias.

Nesse sentido, o que o Brasil e outros países comprometidos com o fim das violações no complexo devem fazer não é recusar o reassentamento dos presos, condenando-os novamente a mais anos de isolamento, tortura e privações, mas justamente enfrentar as exigências supostamente colocadas na mesa pelo governo americano. Os homens de Guantánamo esperam liberdade digna e justa, não a nossa inação.

E o Itamaraty tem grandes chances de sair vitorioso de uma eventual negociação, assim como aconteceu com o Uruguai. Em dezembro de 2014, o então presidente José Mujica acolheu seis ex-detentos como refugiados sem ceder às exigências.

Considerando que o tema deve tirar o sono do presidente Barack Obama em seu último ano de mandato, sob o risco de descumprir uma de suas principais promessas de campanha, o Brasil tem hoje ainda mais poder de barganha.

É positivo que o Itamaraty tenha finalmente exposto a razão pela qual o Brasil ainda não se juntou ao grupo de países que acolheram ex-detentos de Guantánamo e louvável que a chancelaria se preocupe com a garantia de seus direitos e liberdades e se negue a fazer espionagem em nome dos EUA.

Se quer consolidar a imagem de ator responsável, no entanto, deve fazer muito mais do que fraquejar diante das imposições. Em nome do direito ao refúgio, digamos sim.

JESSICA CARVALHO MORRIS é diretora executiva da Conectas Direitos Humanos
LAURA WAISBICH é assessora do programa de Política Externa da mesma organização

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