Folha de S. Paulo


Rogerio Schietti Cruz

O choro de Obama

A cena é rara na política: no início de seu último ano na Presidência, Barack Obama anuncia medidas para um maior controle de armas de fogo, enfatizando que em nenhum outro país avançado do mundo a violência é tão frequente quanto nos Estados Unidos. E reconhece: "De alguma forma nos tornamos insensíveis e começamos a pensar que isso é normal".

No mesmo pronunciamento, Obama, referindo-se aos massacres ocorridos em Santa Barbara, Columbine e Newtown, exclama: "Toda vez em que penso naquelas crianças eu sinto raiva". Lágrimas lhe caem dos olhos...

Assim como lá, onde a violência armada é presente "nas ruas de Chicago todos os dias", aqui são fartas e diárias as notícias de mortes causadas por armas de fogo em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro conglomerado urbano.

Troche

Se na terra do Tio Sam a resistência maior para mudar esse quadro vem do Congresso, aqui parece vir da própria população, que, no referendo de 2005, rejeitou proposta de proibição da comercialização de armas de fogo e munições.

Não bastasse, a assim chamada "bancada da bala" animou-se a facilitar o acesso de civis às armas de fogo. Um projeto de lei, na iminência de ser votado no Plenário da Câmara dos Deputados, propõe a redução da idade mínima para a compra de armas de 25 para 21 anos e o aumento da validade do porte de 3 para 10 anos.

O fato é que as políticas públicas não têm gerado os desejados efeitos nessa questão. De acordo com o Mapa da Violência de 2014, 56.337 pessoas foram assassinadas em 2012. Entre 1980 e 2012, o número alcançou a astronômica marca de 1,2 milhão de pessoas.

No levantamento do ano anterior, o coordenador da pesquisa, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, enfatizou que são vários os fatores que concorrem para a explicação de nossos elevados níveis de mortalidade por armas de fogo.

Entre eles estão a facilidade de acesso às armas; a cultura da violência do brasileiro, com alta proporção de assassinatos por motivos fúteis (brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, discussões no trânsito); e a impunidade. O índice de elucidação de homicídios é baixíssimo no Brasil: estima-se que varie entre 5% e 8%, enquanto é de 65% nos Estados Unidos, de 80% na França e de 90% no Reino Unido.

Esses números, e a percepção da população sobre a violência, parecem não causar mais do que os írritos lamentos e brados ouvidos nas ruas, nas conversas, nas entrevistas e nos programas de TV, muitos destes, aliás, responsáveis pela difusão da cultura do ódio e da solução violenta dos conflitos.

Será, de fato, que perdemos a capacidade de indignação diante dessa multidão de mortos todos os anos, de jovens imberbes portando armas de fogo pelas ruas dos grandes centros urbanos, de notícias de civis sendo mortos em desastradas ações policiais, de balas perdidas tirando a vida de crianças que brincam em frente de suas casas?

Ao que tudo indica, estamos entorpecidos por essa realidade e, como lamenta Obama, começamos a pensar que isso tudo é normal.

Se for assim, resta-nos chorar, não o choro indignado de Obama, mas o choro inútil dos conformados; ou reagir e tentar construir um outro futuro, ainda que isso pareça uma utopia.

Quem o diz é o filósofo Slavoj Zizek: "Isso implica ações corajosas, que, atentas ao retrovisor da história, mirem o horizonte descortinado à frente de nosso tempo. É o que se espera de quem, nos limites de seu poder, tem a possibilidade de definir as coordenadas do futuro".

ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 53, doutor e mestre em direito processual pela USP, é ministro do Superior Tribunal de Justiça

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