Folha de S. Paulo


LUIZ ARMANDO BAGOLIN

Barbárie na biblioteca

Num dos episódios da série britânica "Black Mirror", a personagem do primeiro-ministro recebe a notícia de que a filha da rainha havia sido sequestrada e de que haveria uma exigência excêntrica dos raptores para a liberação dela.

O premiê tenta, então, elencar hipóteses absurdas para o ato bárbaro –entre elas, a possibilidade dos terroristas exigirem a salvação das "malditas bibliotecas".

A ficção alude ao desinteresse do político moderno não apenas por bibliotecas públicas, mas pelo sentido específico da ciência e da cultura, assim como suas finalidades num mundo cada vez mais desencantado, de crescente individualização de interesses.

Max Weber propôs o tema aos estudantes da Universidade de Munique numa conferência em novembro de 1917. Para ele, não seria possível responder ao sentido da vida humana, seja no plano coletivo, seja no plano pessoal, pela via da ciência, uma vez que a busca de sentido pelo método científico é incessante, e as respostas por ele obtidas são sempre passíveis de serem ultrapassadas.

Acho prudente retomar a conferência para os estudantes de hoje. Na última sexta (8), durante os protestos por um sistema de transporte mais humanizado e mais barato para toda a população, alguns estudantes (mas fique claro que ali não havia apenas estudantes) recorreram, em resposta à repressão policial, a atos de vandalismo, atingindo a Biblioteca Mário de Andrade, a segunda maior do país e a mais importante de São Paulo.

Pedras quebraram a fachada de vidro e uma bala atingiu uma das portas. A biblioteca ficará fechada até a perícia concluir seu trabalho. Foi a segunda vez que isso ocorreu. Durante as manifestações de 2013, o prédio foi pichado, atacado com pedras e alvejado por dois tiros de arma de fogo. Na ocasião, fizemos os reparos calados.

Agora, sentimo-nos obrigados a nos manifestar. Atacar uma biblioteca pública não é apenas uma contingência do momento político, tampouco um efeito colateral adverso na luta dos manifestantes. Representa, na verdade, uma crise mais profunda em nossa sociedade.

Por que se preocupar com bibliotecas e centros culturais se o trabalho desenvolvido nesses espaços não oferece respostas definitivas, não resolve os problemas ordinários, muito menos os existenciais?

Weber pensou o Estado como "uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física"; ao se insurgir contra ele, os opositores reivindicariam para si a transferência desse direito.

Portanto, esses espaços –vistos como equipamentos a serviço do poder estatal contra o qual se está insurgindo– seriam alvos justificáveis de agressão.

Não tento aqui explicar a violência, pressuposta pela lógica do Estado moderno. Trata-se de questionar o sentido da cultura para o homem civilizado, que vive em cidades repletas de serviços, mas, sentindo-se inconformado com sua situação atual, insiste em recomeçar a progressão de seus atos civilizatórios desde a sua origem, desde a barbárie.

Qual seria a lição dada por Weber aos estudantes brasileiros de hoje? Será que sua resposta ao final daquela conferência ainda nos serviria? "É necessário lançar-se ao trabalho e responder –como homem e de um modo profissional– à exigência de cada dia."

LUIZ ARMANDO BAGOLIN, 52, é professor de história do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e diretor da Biblioteca Mário de Andrade

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