Folha de S. Paulo


KAI ENNO LEHMANN

Países europeus devem fechar fronteiras para combater o terrorismo? Não

PRECISAMOS DE ESTRATÉGIA

Como era de se esperar, os terríveis ataques terroristas que deixaram mais de 120 mortos em Paris na semana passada rapidamente levaram a um debate sobre como os países europeus podem garantir tanto as liberdades civis quanto a segurança dos seus cidadãos.

Nessa contenda, um dos assuntos mais importantes é a livre circulação de pessoas entre os estados membros da União Europeia, uma das garantias do direito comum do cidadão europeu.

Dentro desse contexto, o Acordo de Schengen, que dispensa os controles fronteiriços entre a maioria dos países do grupo, está sendo basicamente desfeito, com controles e até muros reaparecendo em muitos pontos da Europa.

Bel Falleiros

O argumento a favor desses desenvolvimentos é simples: sem controles fronteiriços, é possível que os terroristas cruzem as fronteiras livremente para cometerem ataques. Se houvesse controle nas fronteiras, haveria a possibilidade de detê-los antes de praticarem qualquer ação.

Esse argumento, todavia, apresenta vários problemas. O mais crucial deles é imaginar que os terroristas agiriam exatamente da mesma forma, independentemente das ações dos governos.

Por exemplo, se houvesse um controle rigoroso de todo o tráfego de pessoas entre a Bélgica e a França, é muito provável que as mesmas pessoas belgas agora consideradas líderes dos ataques em Paris simplesmente tivessem ficado em casa para coordenar os ataques.

Com os modernos meios de comunicação de que dispomos hoje, não seria muito difícil. A Al Qaeda já havia demonstrado isso em 2001.

Em outras palavras, terroristas se adaptam às ações de governos. Por exemplo, o fato de, hoje, ser quase impossível entrar em aviões com facas não impediu que o Estado Islâmico derrubasse um avião russo no Egito no final de outubro.

Isso nos leva a uma consideração mais estratégica. Qual seria o objetivo da política antiterrorista após os ataques em Paris? Se for segurança total, nunca conseguiremos. A França tem leis de segurança duríssimas, com milhares de policiais e militares na rua há meses e, mesmo assim, não conseguiu evitar um novo ataque terrorista.

Segurança total não existe. O presidente François Hollande declarou que a França está em guerra. Isso dá legitimidade ao Estado Islâmico e exige que a França considere mandar soldados para Síria, Iraque e Líbia, o que divide a opinião pública.

Também é preciso mencionar a hipocrisia francesa ao vender armas para a Arábia Saudita, país que mais financia o Estado Islâmico.

De qualquer forma, o controle de fronteiras ou de pessoas, o estado de exceção que agora existe na França e os ataques aéreos são táticas que ainda estão em busca de uma estratégia. Essa, sim, está faltando.

Desfazer o Acordo de Schengen não irá contribuir para o fim do terrorismo. Além disso, provocaria perdas econômicas e impactaria a ideia normativa da União Europeia. Seria mais uma tática em busca de uma estratégia.

Até agora, a reação aos ataques tem sido benéfica para o Estado Islâmico, criando as condições para uma "luta de civilizações" que a facção terrorista tanto quer. Está na hora de pensarmos o que nós realmente queremos e o que realmente estamos defendendo.

Ao tomar tais decisões, os riscos serão inevitáveis, mas iremos assumi-los em defesa de políticas que possam vencer as ideais do Estado Islâmico, e não assimilar as nossas ao ideário deles.

KAI ENNO LEHMANN é professor do Departamento de Relações Internacionais da USP

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