Folha de S. Paulo


José Humberto Fregnani, Paulo Henrique França e Jorge Alves Venâncio

Uma tragédia anunciada

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 200/2015 (PLS), que promete trazer menos burocracia às pesquisas clínicas no país. Recentemente, o PLS foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e, agora, segue em apreciação pela Comissão de Ciência e Tecnologia. O PLS, ao contrário do que possa parecer, não é um avanço para a sociedade brasileira, muito pelo contrário.

A verdade é que a promessa de menos burocracia advogada pelo PLS (leia-se: tramitação com menos questionamentos) está baseada, entre outras coisas, em um perigoso caminho: a criação dos chamados Comitês de Ética Independentes.

Hoje, a análise ética das pesquisas é realizada por um sistema integrado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) –comissão do Conselho Nacional de Saúde, sediada em Brasília– e por cerca de 700 Comitês de Ética em Pesquisa espalhados em variadas instituições no país.

O PLS extingue esse sistema e, no seu lugar, propõe a criação de um novo, baseado em uma rede desintegrada de Comitês de Ética, sem qualquer vínculo institucional. Esses novos Comitês não serão independentes, como se imagina.

É fácil prever que, com a aprovação do PLS, os laboratórios farmacêuticos poderão criar os seus próprios comitês ou, no mínimo, apoiarão financeiramente alguns deles, o que configura perigosíssimo conflito de interesse. Isso poderá levar a aprovação dos estudos da indústria farmacêutica sem maiores questionamentos éticos.

Recentemente, a Índia passou por processo semelhante. O resultado foi desastroso. A Suprema Corte da Índia, após verificar centenas de mortes provocadas diretamente pelos medicamentos experimentais, decidiu cancelar as pesquisas clínicas no país até que houvesse a restituição de normas éticas rígidas e bem estruturadas.

Aqueles que defendem a aprovação do PLS reclamam dos prazos de análise da Conep, afirmando, equivocadamente, que esses são maiores do que 12 meses.

Isso aconteceu no passado, quando a Conep tinha número insuficiente de relatores e assessores para a análise dos protocolos. Mas essa não é a realidade atual. De 2013 para cá, a Conep dobrou o número de assessores técnicos e de relatores, e quadruplicou o número de pareceres emitidos mensalmente.

No último trimestre, o tempo médio de tramitação na Conep foi de aproximadamente 50 dias, número este bem diferente do que vem sendo alardeado, nas últimas semanas, por alguns pesquisadores e pela indústria farmacêutica na mídia. Além do mais, uma nova Resolução do Conselho Nacional de Saúde, a ser publicada em breve, trará ainda mais agilidade às análises dos protocolos de pesquisa clínica no país.

A promessa do PLS, de menor burocracia, significa, na verdade, fazer menos questionamentos éticos e aprovar, com mais facilidade, estudos que interessam à indústria farmacêutica, mas que poderão ser inseguros e trazer danos aos voluntários da pesquisa.

Não se avança, legitimamente, afrouxando-se a análise ética e colocando-se os pacientes que participam de pesquisas em risco. Temos muito que aprender com a Índia.

JOSÉ HUMBERTO TAVARES GUERREIRO FREGNANI, 42, médico, é pesquisador do Hospital de Câncer de Barretos e membro titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
PAULO HENRIQUE CONDEIXA FRANÇA, 45, é pesquisador da Universidade da Região de Joinville (Univille) e membro titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
JORGE ALVES DE ALMEIDA VENÂNCIO, 64, médico, é representante da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil no Conselho Nacional de Saúde e coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

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