Folha de S. Paulo


CARL HART

O viral e o crônico

Você talvez tenha ouvido falar do professor universitário americano e negro que foi barrado em um hotel cinco estrelas de São Paulo, onde deveria dar uma palestra. Em 24 horas, essa história se tornou viral, em parte porque o público ficou indignado, com razão, ao pensar que um homem negro teria sido impedido de entrar em um hotel com base unicamente em sua cor.

Visca

Sou eu esse professor universitário negro. Recebi uma enxurrada de apoio. Centenas de pessoas de todas as raças me mandaram palavras de incentivo e pedidos de desculpas pelas redes sociais. Não posso mais andar pelas ruas de São Paulo sem que alguém me pare para expressar solidariedade e lamentar como fui tratado pelos funcionários do hotel.

Felizmente, a história conforme foi relatada não é verdadeira. Em momento algum cheguei a ser barrado pelos funcionários do hotel e eu não tive a menor consciência da extensão do caso até ler sobre ele.

O que realmente me preocupa é que a odiosa discriminação racial que ocorre diariamente na sociedade brasileira não gera uma fração da atenção, de solidariedade e de sentimento de culpa manifestados em resposta a esse fato fictício.

Tenho tido a sorte de vir ao Brasil em várias ocasiões e já descobri muita coisa sobre a discriminação racial existente nesta sociedade. Em artigo recente, eu detalho, por exemplo, como a guerra às drogas facilita a discriminação racial cotidiana aqui (http://bit.ly/surhart).

O que é pior é que pelo menos dois fatos nas últimas semanas oferecem exemplos possivelmente ainda mais flagrantes de discriminação racial. Foi relatado –e confirmada pelo governo– que a polícia do Rio vem removendo grupos de rapazes negros de ônibus, em um esforço para impedi-los de ir à praia.

Vale notar que nenhum deles foi acusado de qualquer crime. Mesmo assim, a medida está sendo justificada como técnica de prevenção da criminalidade. Fato notável, a maioria dos moradores do Rio é a favor dessa medida discriminatória racial. O que é especialmente vergonhoso é que ainda não ouvi dizer que alguém, incluindo autoridades públicas, tenha pedido desculpas a esses meninos negros.

Outro caso relevante recente é o protesto em relação à chacina de 19 pessoas (quase todas de cor) por um grupo de extermínio em São Paulo. O protesto ocorreu a poucas quadras de meu hotel, na sexta-feira (28), dia de minha palestra, proferida para um grupo de advogados, em sua maioria criminalistas.

Lamentavelmente, o número de pessoas assistindo à minha palestra era, pelo menos, quatro vezes maior do que o de participantes do protesto. Minha esperança era que a história da chacina viralizasse e que muito mais pessoas participassem da manifestação.

Em um primeiro momento, fiquei perplexo com a atenção pública tremenda suscitada pela alegada discriminação racial cometida contra mim. Está claro, contudo, que a imprensa e o público se sentem muito mais à vontade priorizando atos individuais em que a vítima é uma figura pública, em vez da discriminação racial contínua contra cidadãos comuns e sem voz.

A discriminação cometida contra pessoas sem voz parece não ser material próprio para se tornar viral, mas está claro que é uma condição crônica e esmagadora. Esse fato me mostrou que não sou mais um "cidadão comum".

O que é mais importante: esse fato intensificou meu desejo de destacar as barreiras estruturais, incluindo as políticas draconianas em relação às drogas e o policiamento sem controle, que propiciam a persistência da discriminação racial. Ironicamente, esse era o tema de minha palestra, que recebeu muito menos atenção que o incidente no hotel, que nunca aconteceu.

CARL L. HART, 48, neurocientista, é professor de psicologia e psiquiatria da Universidade Columbia (EUA) e autor de "Um Preço Muito Alto" (ed. Zahar)
Tradução de CLARA ALLAIN

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