Folha de S. Paulo


Editorial

Descaso em cartório

Nada menos que 333 deputados federais votaram a favor da chamada PEC dos Cartórios, proposta de emenda constitucional que efetiva no cargo, sem concurso público, pessoas que hoje comandam tabelionatos de forma interina.

Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, dos atuais 13.785 dirigentes de cartórios, 4.576 chegaram ao posto por obra e graça de padrinhos políticos.

São felizardos que, em pleno ano de 2015, gozam de privilégios típicos de eras arcaicas. Antes da Constituição de 1988, não havia meios de pôr as mãos em uma dessas prebendas valendo-se de mecanismos republicanos.

O constituinte só fez o óbvio: determinou que os cargos fossem preenchidos por concurso público. Ainda hoje, porém, como atesta o CNJ, a regra não foi implementada em um terço das serventias.

Em vez de sacramentar regalias, o Congresso atual deveria avançar onde a Constituinte hesitou. Pela legislação em vigor, esses postos são vitalícios. Amparados nas infindáveis exigências burocráticas e protegidos pela concorrência quase inexistente, recebem fortunas dos cidadãos e não têm incentivos para melhorar a qualidade dos serviços notariais.

Há muito a mudar nesse setor. As demandas documentais feitas pelos três níveis de governo mereceriam corte radical.

Também valeria separar interesses públicos e assuntos privados. Registro de imóveis, por exemplo, está no primeiro tipo; contratos e a grande maioria dos serviços, no segundo. Nestes casos, um regime de concorrência dentro de balizas definidas traria melhores resultados para o conjunto da sociedade.

Os deputados, todavia, parecem alheios ao interesse geral. Cedem a um lobby amiúde descrito como poderoso. Não se sabe a origem do poder, mas se sabe que funcionou na primeira votação na Câmara –e deve obter o mesmo êxito na próxima, antes de seguir para o Senado.

É difícil entender o que mobilizou os deputados. Decerto não foi o grande número de beneficiários da medida, pois eles nem chegam a 5.000. Há duas hipóteses: ou o lobby se manifesta por baixo dos panos, ou os parlamentares de fato imaginam que os responsáveis por esses cartórios adquiriram o direito de manter a sinecura.

Em qualquer caso, assinaram uma declaração de que não dão a mínima para a opinião pública –e, passe o trocadilho, fizeram-no com firma reconhecida.

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