Folha de S. Paulo


EDITORIAL

Traumas herdados

O determinismo genético, a crença de que todas as características do organismo são ditadas pelo código do DNA, sofreu um golpe. Estudo com filhos de sobreviventes do Holocausto mostrou que marcas de vivências traumáticas passaram à geração seguinte sem interferência de sequências genéticas.

O trabalho liderado por Rachel Yehuda analisou os genes de 32 homens e mulheres (e de seus descendentes) que estiveram em campos de concentração ou precisaram se esconder na Segunda Guerra Mundial. No grupo de controle foram estudados judeus que então viviam fora da Europa e seus filhos.

A pesquisa se concentrou em sequências de DNA associadas ao estresse. Descobriu-se que os filhos dos sobreviventes são de fato mais estressados. E que os traumas vividos pelos pais lhes foram transmitidos com os genes, mas não propriamente por eles.

As informações necessárias para desenvolver a propensão ao estresse não estavam no DNA, mas em moléculas que se acoplam aos cromossomos e têm a capacidade de permitir ou impedir a leitura de sequências genéticas específicas.

Esse sistema se tornou conhecido como epigenética. Essa camada adicional de informação, que modula o uso do código genético pelo organismo conforme as exigências do ambiente, normalmente é suprimida entre uma geração e outra.

O estudo de Yehuda vem mostrar que nem sempre isso acontece. Ele se soma a pesquisas similares que haviam comprovado a influência da fome e do tabagismo na saúde mental e no peso da prole, respectivamente (e não vice-versa).

Constata-se pela primeira vez, no entanto, uma via bioquímica hereditária direta, não genética, ligando um fator ambiental experimentado numa geração (o trauma do Holocausto) com um traço comportamental manifestado na geração seguinte (o estresse).

Deve-se ter em mente, porém, que a epigenética é um sistema secundário; as sequências de DNA permanecem como a fonte primordial de informação hereditária. Além disso, ninguém sabe como, no detalhe, as marcas do trauma sobrevivem ao usual "reset".

Não estamos diante de uma mudança de paradigma científico, como diria Thomas Kuhn, mas da descoberta de mais complexidade num fenômeno que a imagem popular da genética acredita ser simples e unidirecional –genes fazem proteínas que determinam todas as características do organismo.

É um pouco mais complicado do que isso.

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