Folha de S. Paulo


Pedro Estevam Serrano

Presidente reeleito pode sofrer impeachment por ato realizado em mandato anterior? Não

GARANTIAS REPUBLICANAS

A aplicação do impeachment ao presidente da República face à prática de conduta típica –ilícita– no exercício de suas funções é um recurso excepcional e que demanda o acolhimento de uma compreensão da Constituição à luz dos princípios republicano e democrático, devendo-se evitar a compreensão literal e isolada dos artigos 85 e 86 da Carta e da lei nº 1.079/50.

Como se sabe, a investidura de um mandado representativo submete os agentes públicos ao exercício do múnus, ou seja, a um conjunto de deveres e responsabilidades, em benefício da coletividade.

Trata-se de uma decorrência do princípio republicano, que é o alicerce do Estado brasileiro. Em outras palavras, ao longo do exercício do mandato popular, os representantes podem ser responsabilizados por atos praticados no decorrer deste mesmo mandato.

Em regimes presidencialistas, o chefe de governo e de Estado –reunidos em uma só pessoa– pode sofrer o impedimento de seu mandato pelo Legislativo, mas apenas com a comprovação de condutas caracterizadoras de ilícitos e mediante métodos processuais que garantam ampla defesa e contraditório.

Conforme estipulado no artigo 85 da Constituição, o presidente poderá sujeitar-se à excepcional medida de perda do mandato por infração político-administrativa, desde que preenchidos determinados requisitos. Eles compreendem, basicamente, uma intencional violação do dever e a prática de conduta típica no exercício do mandato atual.

É importante ressaltar que, especificamente com relação à questão da prática de conduta típica, para que o mandatário sofra impedimento, a conduta em questão necessariamente deve estar vinculada ao mandato vigente, e não ao anterior, em consonância com o caráter republicano das representações populares, marcadas, essencialmente, pela periodicidade dos mandatos.

Por essa razão é que a possibilidade, em tese, de reeleição não significa que ambos os mandatos –cada um de quatro anos– serão considerados um mesmo período para fins de responsabilização político-administrativa.

Para os chamados agentes políticos não se aplica a regra da continuidade administrativa incidente sobre os agentes públicos, que possuem vínculo profissional com o Estado. Para estes, a habilitação técnica os qualifica a entreter relação que se prolonga no tempo, sem qualquer descontinuidade.

No caso do presidente da República, sua reeleição não faculta que seja responsabilizado por ato pretérito, praticado no primeiro mandato.

Ademais, os requisitos jurídicos para a cominação por infração político-administrativa ao presidente da República deve seguir uma tipologia constitucional estrita.

Isso significa que o crime de responsabilidade deve ser compreendido à luz do princípio republicano, o qual é assinalado pela eletividade, pela responsabilidade e, essencialmente, pela periodicidade dos mandatos. Nesse cenário, não há possibilidade de impeachment do presidente da República por ato praticado em mandato anterior.

A Carta conferiu ao presidente todas as garantias do regime republicano-representativo, sem o qual estaria inviabilizado o exercício da relevante função pública de chefia do Estado e do governo, imunizando-o de oportunismos ilegítimos.

É preciso cuidado para que, no Brasil, não se reproduzam os golpes de Estado e medidas de exceção que ocorreram, por exemplo, em Honduras e no Paraguai.

O Brasil possui uma dimensão e solidez democráticas incompatíveis com medidas dessa natureza, as quais, em última análise, podem ter repercussões catastróficas para a vida do nosso povo.

PEDRO ESTEVAM SERRANO, 52, é professor de direito constitucional na PUC-SP e sócio do escritório Teixeira Ferreira e Serrano Advogados Associados

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