Folha de S. Paulo


Celso Amorim

O Centro Carter e a democracia

Entre janeiro de 2003 e agosto de 2004, o Brasil esteve profundamente envolvido com a evolução da crise na Venezuela, originada com o golpe abortado contra o presidente Hugo Chávez, em 2002.

Já no período de transição, em meio a greves e locautes, que alimentavam os confrontos de rua, os dois presidentes, Fernando Henrique e Lula, mantiveram estreita coordenação com o objetivo de evitar uma conflagração de grandes proporções naquele país vizinho.

Troche

Lula enviou a Caracas aquele que viria a ser assessor para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, com quem eu, já indicado para as Relações Exteriores, mantinha contato desde Londres. Nas primeiras semanas de governo, o Brasil tomou a iniciativa de propor a criação de um "grupo de amigos" que deveria ajudar o então secretário-geral da OEA, César Gaviria, na difícil tarefa de encontrar uma solução pacífica, democrática e pela via eleitoral para a crise venezuelana.

O "grupo de amigos" logo assumiu um papel central nos esforços de conciliação e apaziguamento da crise na Venezuela. A criação do grupo exigiu muita negociação, que envolveu isolar os elementos radicais de um lado e de outro. Afinal, durante um encontro de presidentes, por ocasião da posse de Lucio Gutiérrez como primeiro mandatário no Equador, a ideia foi aprovada, apesar das resistências.

Criado o grupo, este teve que se voltar para a situação interna na Venezuela, que caminhava para o impasse. Os opositores de Chávez, com algum apoio da OEA, pressionavam pela realização imediata de um plebiscito ou pela antecipação das eleições. Ambas as sugestões eram consideradas ilegais e inconstitucionais pelo governo venezuelano.

Hugo Chávez, entretanto, admitia outra solução, esta sim, prevista na Constituição venezuelana, que consistia na convocação de um "referendo revogatório", desde que fossem respeitados os ritos e os prazos estabelecidos.

A grande questão que se colocava, em face da crise que opunha as duas correntes políticas (pró e antigoverno), de dimensões muito semelhantes, era a de garantir que o pleito tivesse credibilidade, não só interna, como externa, avalizando o trabalho do grupo de amigos e evitando o isolamento de Caracas.

Depois de um considerável esforço de persuasão, impulsionado pelo Brasil, Chávez terminou por aceitar a presença da OEA, cuja missão foi chefiada por um brasileiro, o embaixador Valter Pecly.

Em todo esse processo, desde a criação do grupo de amigos até a apuração dos votos no referendo, o papel do Centro Carter, cuja neutralidade estava acima de qualquer dúvida, foi fundamental. Mantivemos com seus integrantes, inclusive com seu fundador e presidente, Jimmy Carter, contato constante.

No mesmo dia em que os votos estavam sendo computados, além do nosso embaixador, aconselhei-me com o Centro, antes de conversar com o secretário-geral da OEA, para persuadi-lo da importância de proclamar logo o resultado, a confirmação de Hugo Chávez na Presidência, já que as irregularidades eventualmente encontradas não eram de porte a alterá-lo. Venceu-se, assim, uma etapa crucial da crise venezuelana, ainda que suas raízes mais profundas permaneçam vivas.

Alguns anos depois, o presidente Jimmy Carter visitou o Brasil, acompanhado de sua mulher, Rosalynn. Ambos foram recebidos em audiência pelo presidente Lula, mas coube a mim, juntamente com minha mulher, Ana, homenagear o casal com um almoço no Itamaraty.

Na ocasião, falamos de assuntos como Cuba, Palestina e muitos outros. Ao final desse diálogo, marcado por grande concordância de opiniões, confirmando o que Carter ouvira de Lula, o ex-presidente norte-americano disse: "Sabe de uma coisa, a política do Centro Carter é igual à política externa do Brasil".

Foi, pois, com tristeza que soube, lendo esta Folha, que uma instituição tão ativa na busca da paz, do diálogo e da conciliação, e tão respeitada por sua imparcialidade, não vá estar presente acompanhando de perto nas eleições parlamentares na Venezuela.

CELSO AMORIM, 73, diplomata, foi ministro das Relações Exteriores (1993-1995 e 2003-2010) e da Defesa (2011-2015)

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