Folha de S. Paulo


MATHEUS MAGENTA

Não me agrade que eu gosto

SÃO PAULO - O gosto amargo surgiu já no primeiro episódio da série sobre chefs de cozinha lançada por um serviço on-line de vídeos adepto da lógica "se você gostou de A, vai gostar de B e C também".

Personagem excêntrico, câmera lenta, opinião de especialista, trilha sonora erudita e profundidade de feira de ciências de escola primária. A fórmula atende a expectativas, mas passa do ponto na busca incessante por agradar o espectador.

Não é novidade que o cinema adote fórmulas, birôs de tendência e exibições-teste para orientar a produção por mais bilheterias –o mesmo vale para as indústrias fonográfica, têxtil, automobilística, alimentícia etc.

A diferença é que serviços como Netflix e Spotify empurram cavalos de Troia com pesquisadores acurados para dentro das casas. Mesmo sem querer, respondemos às perguntas: Quantos filmes foram vistos até o fim? Quais atores aparecem nessa lista? Que gêneros, histórias, durações agradam mais ou menos?

O aprofundamento da análise de mercado, com cérebros refletindo sobre a infinidade de dados colhidos em redes sociais, tem gerado uma produção precisa e frustrante.

O traço mais relevante da vanguarda é a superação das expectativas, e não a satisfação delas. Para os vanguardistas, a arte só pode prosperar se a surpresa for radical. Filmes e séries marcantes só usam a produção anterior como contraexemplo.

A fruição dos clientes que pediam em videolocadoras sugestões de longas que "não façam pensar" ou que "façam rir como aquele outro" ficou ainda mais conformada com a praticidade desses serviços na internet.

A indústria criativa vê os bilionários bancos de dados –abastecidos pelos próprios usuários em redes sociais e sistemas de busca– como tábuas de salvação, mas ignora armadilhas do consumo insaciável.

Resta a expectativa, essa sim a ser satisfeita, de que a busca por novidades agradáveis transforme a mesmice em inspiração para inconformistas.


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