Folha de S. Paulo


walter feldman

Futebol para além do bem e do mal

Talvez por mexer fundo com as paixões, heróis e vilões nascem e morrem todas as semanas no futebol. Têm brilho curto, exaltados ou criticados pela mídia e torcedores até que a próxima partida prove o contrário. E como sempre há uma próxima partida, a possibilidade do herói virar vilão é a ameaça constante daqueles que se encontram no palco de quatro linhas.

Às vezes, alguns se destacam tanto que recebem alcunhas, desde santo até rei. Mas até mesmo estes, os ídolos, estão sujeitos à mudança dos humores dos torcedores que, ao vê-los perder um pênalti, o campeonato almejado ou se transferir para um time rival, transformam-no em personificação do mal.

Habitar essa zona mutável entre o bem e o mal é uma característica marcante do futebol. É "nós" contra "eles", em uma ética maleável que não se altera enquanto prevalecer o "nosso" lado. Quando encontram a vitória, mesmo que esta venha em um erro da arbitragem ao seu favor, está tudo bem! E quando acerta um lance contra o seu time, o árbitro pode ser o vilão.

Ludibriar a arbitragem, fazendo marcar um pênalti inexistente, vira esperteza do jogador. A mão de Maradona logo virou a mão de Deus para todo argentino, colocando-o acima do bem e do mal.

Tal postura também se repete fora dos limites do campo. O modo como a mídia tem tratado a Medida Provisória do Futebol, aprovada nesta terça-feira (7) na Câmara dos Deputados, é um exemplo.

A manobra regimental na comissão que discutia a matéria na Câmara foi aplaudida pela imprensa que repercutiu como um "olé" nos que são chamados de "bancada da bola" pela mídia. Uma vitória do "bem nosso" contra o "mal deles". Artifícios para formar opiniões unânimes.

Como já disse Nelson Rodrigues, porém, toda unanimidade é burra. O primeiro equívoco é polarizar a discussão, tentando dar aos clubes e à CBF uma carga que não corresponde à verdade. Distribuem a imagem de que clubes e confederação são contra a modernização e as contrapartidas, quando, na verdade, são os maiores interessados.

Outro equívoco, ainda mais grave: esquecem-se da importância do debate democrático entre os envolvidos na discussão. A divergência de opiniões e de posicionamentos é o que enriquece a sociedade, simplificá-la em um maniqueísmo não serve de nada à democracia.

Mas no regime democrático, como no futebol, sempre há uma nova partida para virar o jogo. A CBF, por mais que a mídia tente negar, está preparada para um debate. Tanto é que se manteve aberta mesmo após o desentendimento na última sessão na comissão. A CBF vem ampliando sua democracia interna, mudando seu estatuto, diminuindo mandato, buscando a transparência e a responsabilidade social.

As mudanças na Confederação Brasileira de Futebol estão em curso e será preciso assimilá-las, superando a alcunha de "vilã" que o maniqueísmo de parte da imprensa desportiva insiste em lhe conferir.

E se superássemos, pelo menos em parte, o maniqueísmo em todo o futebol, o que teríamos? Quem sabe, um maior respeito entre torcidas rivais, a possibilidade de se encantar com um time que não o seu. Teríamos os jogadores em condições de igualdade e clima de cordialidade, fazendo do "fair play" a regra natural, e suas únicas subversões seriam os dribles.

O futebol poderia ser a grande praça de encontro entre alteridades, de aproximação de diferenças, para além do bem e do mal. Poderia provocar reflexões, com exemplos para o desenvolvimento de uma educação para a ética e fugir de um posicionamento e lugar comum. A imprensa possui um papel fundamental para que isso ocorra.

WALTER FELDMAN, 61, médico, é secretário-geral da CBF - Confederação Brasileira de Futebol. Foi deputado federal pelo PSB-SP

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