Folha de S. Paulo


RAYMUNDO PARANÁ E RAUL CUTAIT

Culto ao corpo, desprezo à saúde

A sociedade vive diversas contradições, muitas delas fomentadas por modismos que só espelham a superficialidade e o imediatismo de valores contemporâneos, dentre eles o excessivo culto ao corpo.

Informações que circulam pelas redes sociais, muitas delas sem nenhum respaldo científico, induzem à crença de que o uso de determinadas substâncias ajuda na construção de corpos "perfeitos" ou "desintoxica" o organismo, mas sem apontar os possíveis riscos à saúde.

Não há dados precisos sobre quantas pessoas usam rotineiramente essas substâncias, mas o fato é que em vários países é crescente o número de pacientes atendidos por toxicidade delas decorrentes.

Não é incomum o uso de mais de uma dessas substâncias, tais como anabolizantes injetáveis, oxandrolona e hormônio de crescimento. De forma isolada ou combinada, eles podem aumentar a massa muscular, mas criam um considerável risco de morte súbita por infarto, arritmia cardíaca ou hemorragia cerebral, além de problemas como insuficiência renal, tumores do fígado e distúrbios de coagulação.

Em adição, a lista de substâncias e fórmulas "promissoras", definidas pelo imaginário criativo do prescritor ou do fabricante, é longa.

Inclui, por exemplo, as fórmulas termogênicas, supostamente para ajudar na queima de calorias, que incluem chá verde, espirulina, yombina, óleo de cartamo e tribulus terrestres, as quais, em função da dose e de fatores genéticos do indivíduo, podem apresentar diferentes graus de toxicidade, principalmente hepatite medicamentosa.

Essa lista inclui também as chamadas dietas "detox", cujo suposto efeito seria a retirada de toxinas do organismo associada à perda de peso. Nesse grupo não há padronização e ainda associam-se diferentes práticas, incluindo lavagens intestinais que, além de ineficazes, podem causar perfuração intestinal.

Recentemente, tem sido disseminada a chamada terapêutica anti-aging, que consiste em se associar altas doses de vitaminas, hormônio do crescimento, testosterona e outros anabolizantes para reduzir os efeitos do envelhecimento. A faixa etária que se submete a essas práticas é ainda mais vulnerável aos efeitos adversos dessas medicações, o que é omitido por quem prescreve.

Essas nefastas práticas são estimuladas não apenas pelo culto ao corpo mas também por um mercado que movimenta mais de US$ 70 bilhões ao ano e que não é profundamente regulamentado pelas agências fiscalizadoras de vários países.

O culto ao corpo não é condenável, desde que seja em função da busca por uma melhor qualidade de vida. A autoestima que dele pode advir é desejável e pode ser estimulada, desde que não comprometa a saúde através de falsas premissas.

Assim, a melhor maneira de se coibir as práticas insensatas e perniciosas é trazê-las para o terreno da ciência. A comprovação científica, apoiada em divulgação honesta sobre benefícios e riscos, é fundamental para que cada indivíduo possa tomar as decisões sobre o que quer fazer com seu próprio corpo.

Os padrões estéticos existem, sendo inevitável que as pessoas procurem se adequar ao que os modismos impõem. Entretanto, nada pode se sobrepor à responsabilidade de cada um frente ao bem maior que é a saúde e a própria vida.

Portanto está mais do que na hora de a imprensa e as sociedades médicas se mobilizarem para coibir o descontrole que hoje se vive na busca do "melhor corpo". Nós, particularmente, estamos incomodados vendo pacientes sofrerem as consequências desses desatinos.

RAYMUNDO PARANÁ, 55, é professor titular de gastro-hepatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia
RAUL CUTAIT, 65, professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, é membro da Academia Nacional de Medicina

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