Folha de S. Paulo


Rodrigo da Silva

Não existe direita no Brasil

Ela está em todos os cantos, virou a nova febre na política nacional. Vai às ruas, ergue bandeiras, entoa gritos, bate panelas, virou tendência. Uns dizem que ela andava meio escondida, depois de longas décadas de domínio.

Outros insistem que ela sempre foi maioria por aqui. De fato, ame ou odeie, é impossível permanecer indiferente em relação a ela. Só tem um problema: ela não existe.

Não, não existe "direita". Muito menos "nova direita", como boa parte das publicações tupiniquins insistem em classificar a nova onda política presente no país. Existe a esquerda e existe o resto. A esquerda é uma marca, uma grife, um produto cultural facilmente identificável. A "direita" é um palavrão, um xingamento, uma pilhéria –ou, ainda pior, um delírio, uma distração, aquilo-que-não-é-esquerda.

Esse cenário é fácil de ser explicado. Na rasa dicotomia esquerda-direita, a esquerda é a protagonista do debate, a mocinha. A direita é a antagonista, a vilã ilegítima. Diga que você é de esquerda e todo mundo saberá o que você está dizendo –à exceção de uma vertente irrisória de liberais que se proclamam de esquerda e não passam de um mero asterisco entre os canhotos ("um bando de reaças", pra eles).

E do outro lado? Resta a sobra: conservadores, nacionalistas, fascistas, neoconservadores, democratas-cristãos, anarquistas de mercado, teocratas, monarquistas, reacionários de almanaque, defensores da ditadura militar...

Como diz o economista americano Thomas Sowell, "falar da 'esquerda' é assumir que existe implicitamente outro grupo adversário igualmente coerente que se constitui como 'direita'". Não há. A esquerda possui um passado, sentado à esquerda da Assembleia francesa no século dezoito, e sua luta, em distintos graus (e não sem seus arranca-rabos, é verdade), trabalha pela diminuição da desigualdade.

O outro lado é o resto, uma abstração, com grupos sem qualquer conexão, que não raramente defendem pautas antagônicas como se digladiam com tanto furor quanto combatem a esquerda.

Para Norberto Bobbio, a mera distinção entre os diferentes apelos em relação à igualdade justificam a natureza da dicotomia. Nesse cenário, a direita funciona como uma espécie de ideologização da saia justa, quando você é obrigado a acatar injustificadamente a vergonha por grupos completamente distintos ao seu pela mera simplificação do debate.

Graças a essa mistura, que põe lado a lado Edmund Burke e a trupe grega do Aurora Dourada, ou figuras como Murray Rothbard e Eduardo Cunha, evidenciando os extremos, as pautas desses diversos grupos que compõe a direita são constantemente tratadas como ilegítimas e golpistas –e não raramente afastam aquele potencial simpatizante, envergonhado em assumir qualquer ideia tida como de direita pra não correr o risco de construir a imagem de um lambedor de botas ou de um troglodita preconceituoso qualquer.

Nos simbolismos pré-estabelecidos da dicotomia, esquerda e direita são estados de espírito. A esquerda é humanitária, moderna, multicultural, politizada, zen, jovem. A direita é intolerante, atrasada, egoísta, ignorante, violenta, velha. A esquerda é solidária, antenada, científica, secular e engajada. A direita é mesquinha, sectária, poluente, extremista e acomodada.

Na construção dos termos, a esquerda é tudo aquilo que a gente deveria ser. A direita é o contrário disso. A esquerda: um raio vívido, de amor e de esperança. A direita: deitada eternamente em berço esplêndido.

No duelo, a esquerda, como protagonista, detém o monopólio sagrado daquilo que é entendido como povo, e por consequência, fala em nome dele, luta por ele, vive por ele. A direita, como sobra ideológica, é ilegítima. Vive como um vampiro às custas da vontade popular.

As ruas não lhe pertence. Seus protestos, suas preces, seus lamentos ecoam apenas nas gargantas dos coxinhas insensíveis. Como resto que é, está condenada a viver como uma ofensa pessoal transformada em espectro político.

Por isso, não há como escapar. Nesse cenário estereotipado de esquerda-direita só há um vencedor, que pauta e constrói a imagem de seu antagonista. E uma dica: não é a direita, seja lá o que isso signifique.

RODRIGO DA SILVA, 28, é editor do site "Spotniks"

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