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opinião

Ricardo Nitrini: É preciso saber sobre vacina do sarampo

Há algum tempo, pequenos grupos de pais nos Estados Unidos têm se posicionado contra a vacinação de seus filhos para a prevenção do sarampo. A principal razão alegada é a de que a vacinação poderia aumentar o risco de autismo. De fato, em 1998, um pequeno estudo que sugeriu esta associação foi publicado em revista médica de grande prestígio.

Estudos subsequentes não só não confirmaram a hipótese inicial como demonstraram que o primeiro estudo foi fraudulento. Ao término das investigações, a revista médica optou por aceitar a retratação da maioria dos autores e por excluir o artigo de suas publicações.

Apesar de todas estas evidências, alguns pais continuam a impedir a vacinação de seus filhos. Antes que esta ideia equivocada venha a vicejar em nosso meio, é importante informar que além do próprio sarampo, que pode ser uma doença grave, sendo uma das principais causas de morte em crianças menores de cinco anos de idade em países em que não há vacinação, existe uma complicação tardia do sarampo que os pais não podem ignorar.

Como neurologista em atividade há mais de 40 anos, pude ver alguns casos desta complicação tardia do sarampo denominada panencefalite esclerosante subaguda.

É uma doença terrível, um diagnóstico que temíamos pois, quando a criança ou pré-adolescente, até então completamente normal, começava a apresentar os primeiros sintomas de queda no rendimento escolar, associada a leves alterações de comportamento, alguns movimentos involuntários ou crises convulsivas e os exames confirmavam o diagnóstico.

Já sabíamos o que iria acontecer: progressivo declínio mental, comprometimento motor e morte em todos os casos, a maioria entre poucos meses a três anos. Nada que fizéssemos iria alterar esta evoluçāo.

Sabíamos que o vírus do sarampo, que não tinha sido completamente eliminado quando do sarampo inicial, havia permanecido em estado dormente e voltara para atacar o sistema nervoso central. No cérebro, havia inflamação, destruição dos neurônios e seus prolongamentos substituídos por um processo similar a fibrose, daí advindo o termo "esclerosante".

Esta encefalite ocorria em número reduzido de casos, mais frequentemente quando o sarampo havia se manifestado em crianças com menos de dois anos de idade.

Em tese de livre-docência apresentada em 1983 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o neurologista Luiz Alberto Bacheschi apresentou dados de 82 pacientes internados no Hospital das Clínicas entre 1961 e 1983, ou quase quatro casos por ano, mostrando que a doença não era tão rara assim.

Com a introdução da vacina nos Estados Unidos na década de 1960, esta encefalite virtualmente desapareceu naquele país. No Brasil, a vacinação teve início na década de 1970 e a cobertura vacinal aumentou progressivamente de modo que também em nosso país a panencefalite esclerosante subaguda tornou-se ainda mais rara, fazendo com que muitos neurologistas mais jovens nunca tenham visto um único caso. Ainda hoje, não há tratamento disponível.

Recentemente, constatamos um caso no Hospital das Clínicas da FMUSP, em indivíduo com mais de 50 anos que não fora vacinado. Nada pudemos fazer para impedir a progressão da doença.

Esperemos que a panencefalite esclerosante subaguda continue a ser doença muito rara e que venha a fazer parte das doenças erradicadas, tendo lugar apenas nos livros de História da Medicina.

Para isto, a vacinação é essencial.

RICARDO NITRINI é professor titular de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP e diretor da divisão de neurologia clínica do Hospital das Clínicas da FMUSP

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