Folha de S. Paulo


Sônia Hypolito: Resgatando a verdade histórica

No dia 26 de dezembro de 2014, foi publicado neste espaço o artigo "As vítimas das vítimas", que se posiciona contra o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e contra a proposta de revisão da Lei da Anistia.

Poderia ser mais uma vociferação de um saudoso da ditadura militar, que busca pretextos para se livrar da responsabilidade pelos crimes praticados depois do golpe de 1964.

A novidade foi o signatário do artigo, Jaime Edmundo Dolce, acusar-me de ser coautora de homicídios durante uma ação da guerrilha em 1972. Uma acusação sem fundamento, sem indícios, sem provas, lançada num espaço de amplitude nacional, sem nada que a justifique.

É possível divisar, nessas ações de propaganda da extrema direita, a continuidade da perseguição política iniciada naqueles tempos obscuros. A impunidade dos autores das atrocidades da ditadura encoraja esse tipo de abuso, mesmo décadas depois do golpe e já restauradas as liberdades democráticas.

No meu tempo de estudante, militei na resistência à ditadura. Assisti à supressão dos direitos civis e políticos, às prisões ilegais, às demissões arbitrárias, ao exílio, à tortura, à extrema covardia das sevícias contra mulheres.

Espanta-me ter de conviver agora com a tentativa de assassinato da minha reputação pelo suposto crime de ter lutado pela democracia.

A liberdade de informação –eliminada pelos governos militares e reconquistada graças às lutas democráticas– inclui o respeito à esfera subjetiva e à honra das pessoas. Além disso, o artigo 138 do Código Penal define como calúnia atribuir publicamente a alguém a prática de um crime não cometido.

Quanto à Comissão Nacional da Verdade, a lei nº 12.528/11 fixou para ela o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas de 1946 a 1988, com a finalidade de efetivar o direito à memória, à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

A CNV foi criada dentro do espírito da construção universal dos direitos humanos, que preceitua a instauração de uma Justiça de transição após regime de exceção para resgatar a verdade e responsabilizar os agentes do Estado que perpetraram crimes imprescritíveis contra a humanidade.

Nesse contexto, não se podem equiparar agentes do Estado que praticaram graves violações de direitos humanos com ativistas que se opuseram à ditadura. Tampouco cabe o termo "terrorista", largamente empregado pelos golpistas para rotular opositores.

O direito de sublevar-se contra a tirania é norma superior do direito consagrada desde a Revolução Francesa de 1789. Ademais, os opositores de esquerda foram processados, muitos condenados e outros absolvidos pelas instâncias judiciárias no regime de exceção, enquanto torturadores e assassinos da repressão nunca foram julgados.

Já sobre a revisão da Lei da Anistia, é necessário estabelecer um divisor de águas no sentido de diferenciar o ativista político, que legitimamente se insurgiu contra a ditadura, dos agentes do regime, que devem ser submetidos ao devido julgamento. No contexto da edição da lei, em 1979, não havia condições políticas para essa distinção.

Passado meio século desde o golpe militar, não se pode permitir que nossa memória seja roubada, que continuem a nos desrespeitar, nem podemos aceitar que neste momento alguém esteja sendo torturado dentro de uma prisão.

O resgate da verdade histórica e a defesa da dignidade humana constituem dever para todos os que compartilham os valores que sempre nos moveram: a liberdade e a democracia.

SÔNIA HYPOLITO, 68, é servidora da Câmara Federal

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