Folha de S. Paulo


Silvio Meira: Leva uma vida para entender o Carnaval pernambucano

"Não deixem não, que o bloco campeão/ guarde no peito a dor de não cantar/ Um bloco a mais é um sonho que se faz/ dos pastoris da vida singular" diz Getúlio Cavalcanti, cantado pelo Bloco da Saudade, em Último Regresso, frevo-de-bloco quase epitáfio para um carnaval lírico que ia acabar e não acabou jamais. Até porque o Bloco, fundado para lembrar um carnaval passado, foi um dos catalisadores da renovação do carnaval de rua de Recife e Olinda, dos anos 90 pra cá. Pra quem não é daqui, é quase inimaginável uma orquestra de pau e cordas (violinos, clarinetes, violões e bombardinos) e um coro, fantasiado, nas ruas, cantando de cor, um "frevo" como Recife Manhã de Sol, de J. Michilles. Mas o Regresso e a Manhã, atrás do Saudade, são só pequena parte da folia.

Imagine o Siri na Lata na quinta pré-carnaval (porque carnaval aqui começa em janeiro, seja lá quando for o carnaval) com uma orquestra, do Maestro Oséas, com quatro tubas que solam Vassourinhas, mais trompetes, trombones (tantos, nem contei; dez?) saxofones, uma requinta (sabe lá o que é isso?) e uma percussão assustadora, puxando o frevo Envenenado. Seguido por Gostosão, Freio a Óleo, Pilão Deitado e Três da Tarde. Procure no YouTube e você vai ouvir que o carnaval de Recife não se toca com bandas, mas orquestras, na rua, com o mundo frevando ao redor, aperto e calor danados, e todos se achando regentes. Pense na confusão para os maestros, Oséas, Mendes, Lessa, todos. E olhe que não estamos falando das orquestras "de palco", como Spok e Forró, que estão em outra categoria instrumental, onde cada músico é um maestro.

Mas nosso Carnaval não é "só" frevo, por mais frevos, clubes e passistas que haja. Afoxés, Caboclinhos, Cocos, Ursos, Bois, Troças, Bonecos, Escolas de Samba (sim!) e os Maracatus, de baque solto (dos caboclos-de-lança) e virado (dos cortejos reais). Maracatus são coisas daqui, que só havia aqui até dia destes. Quase acabaram, também. Foram salvos pela combinação do armorial (de Ariano Suassuna) e mangue (de Chico Science), que reviveram a tradição dos batuques. Hoje, tem tanta gente nas caixas, alfaias, gonguês e agbês que os corações, em Momo, marcam passo pelas viradas das Nações do Carnaval.

E isso é só Recife e Olinda. Bezerros tem Papangus, Pesqueira Caiporas, Triunfo Caretas Pernambuco tem uma diversidade cultural de carnaval única. Que leva uma vida inteira pra entender. Ou brincar. No Eu Acho é Pouco, que é onde eu estou brincando enquanto você está lendo este texto Evoé!

Silvio Meira é Batuqueiro do Maracatu A CABRA ALADA, provocador-chefe da IKEWAI.com, presidente do Conselho do PORTODIGITAL.org e professor associado da FGV DIREITO RIO


Endereço da página: