Folha de S. Paulo


Ricardo Mioto: Carr e nós

Conheci David Carr, jornalista do "The New York Times" que morreu nesta quinta-feira (12), em agosto, quando ele veio à Folha. À época, escrevi sobre o que ele disse na visita.

Jornalistas tentam sempre manter um distanciamento crítico das pessoas. Deveriam, ao menos. Ninguém vale muita coisa. Thomas Sowell chamou isso de "visão trágica". É um voto de ceticismo contra todos. Se todo mundo tivesse o que merece, ninguém escaparia ao chicote, disse Hamlet.

Com Carr era diferente. Eu queria muito conhecê-lo. O motivo da forte identificação era simples. Carr gostava muito de jornalismo. Eu também.

Que bobagem, dirá o leitor, afinal compartilhávamos a profissão. Não é bem assim. O problema é que quem gosta de jornalismo está cercado por ideias ruins dos gurus do conteúdo livre e da "nova mídia".

A implicância minha e de Carr com essa gente se deve a eles nunca terem atingido o cerne da questão: financiamento, como sempre na vida.

Os gênios do almoço grátis passaram 20 anos bradando que "a informação quer ser livre" –a informação não quer nada– e pedindo o "direito ao conteúdo" e o fim da "mercantilização da notícia". Nunca disseram quem paga a conta.

Ver "mercantilização" em tudo (bom é quando burocratas decidem por nós?) e gostar de inventar direitos sem ter recursos é fruto clássico de certa ideologia à esquerda. Após a queda do Muro de Berlim, profetas desabrigados viram na internet um lugar onde não haveria preços ou muros. Surgiu, como disse John MacArthur, publisher da "Harper's", o "digitalmente correto".

Muitos jornalistas e veículos embarcaram em tal discurso, que chegou a ser majoritário. Resultado: vários colegas pagaram com empregos e até com a morte de veículos cuja história haviam ajudado a construir.

Carr era um grande entusiasta da cobrança por conteúdo na internet –"bom jornalismo custa caro, e eu tenho uma faculdade a pagar para a minha filha", disse na visita.

Era um cara engraçado. Questionado sobre reportagens patrocinadas no site do seu jornal, disse "olha, eu mesmo tenho escrito comerciais para a GM...", criando olhares de horror na plateia. "Brincadeira. Quem faz é um departamento separado, não podemos nem olhar para eles. Entrar no futuro digital não significa ser uma prostituta."

Estava animado. Os anunciantes americanos estavam entendendo melhor o valor dos leitores qualificados dos jornais na internet. Fica cada vez mais claro que o que gurus chamavam de futuro muitas vezes não passa de parasitagem (agregadores de conteúdo), mendicância ("crowdfunding", incapaz de bancar equipes grandes e boas) ou mera opinião, sem apuração.

Carr nos deixa bem agora que o vento está mudando. Mas estou certo de que há mais gente que gosta de jornalismo.


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