Folha de S. Paulo


Nicolás José Isola: A impunidade dessangra a Argentina

O sangue atravessa mais uma vez a Argentina. Em 18 de julho de 1994, a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) de Buenos Aires sofreu um ataque terrorista no qual morreram 85 pessoas. Foi o maior atentado contra os judeus desde a Segunda Guerra Mundial.

Há vinte dias, o promotor Alberto Nisman, que conduzia a investigação sobre o atentado, anunciou que acusaria a presidente Cristina Kirchner de tentar negociar um pacto com o governo do Irã, acusado pelo ataque, para evitar que as investigações chegassem a resultados prejudiciais àquele país. No domingo (18), apareceu morto em seu apartamento, com uma bala calibre 22.

A investigação da morte, desde o início, não pareceu confiável. O Secretário de Segurança, Sergio Berni, sem motivos, chegou ao quarto onde estava o corpo do promotor antes do juiz. Berni aventou aos jornalistas um suposto suicídio, condicionando o processo de investigação.

Dois dias depois, a presidente, tentando influenciar a investigação, lançou sua própria hipótese pelo Facebook: assassinato. Ao mesmo tempo, responsabilizou Diego Lagomarsino, que emprestou a arma para Nisman e foi a última pessoa que o viu com vida, pelo homicídio.

É preciso deixar a justiça trabalhar. A morte está vinculada a lutas internas da Secretaria de Inteligência, ocorridas desde a mudança de Horacio Stiusso, que foi chefe da Secretaria durante décadas e próximo a Nisman.

Stiusso possui múltiplas escutas telefônicas da vida privada e de atos de corrupção de políticos, empresários, periodistas, etc. Stiusso ainda não foi convocado pela promotora do caso. Ele sabe demais. Muitos políticos e juízes tem medo dele falar. Nesse contexto de crise, a presidente anunciou esta semana que vai fechar a Secretaria para fundar outra, mas com o mesmo pessoal. Mudar o nome para que nada mude.

Entre tanto, os meios de comunicação aportaram sua semente para a confusão. Expuseram hipóteses imprecisas e fizeram operações midiáticas de diversos tipos, às vezes organizadas pelos próprios serviços de inteligência.

A impressão de que o país é manipulado por lutas dos Serviços de Inteligência que têm regras mafiosas não é um bom sinal. Isto não começou com a gestão kirchnerista. A lógica de quadrilhas corruptas que se apropriam do Estado tem atravessado os diferentes governos e forma parte de uma cultura que não valoriza as leis como norma.

A sensação da maioria da população é de que esta morte não vai ter uma solução clara perante justiça e o povo argentino. O ceticismo e o constrangimento da cidadania são muito grandes. A morte de Nisman diminui a já deteriorada confiança social nos processos democráticos e na divisão dos poderes, próprios de uma República moderna.

A percepção da maioria dos argentinos é a de voltar ao eterno retorno de não avançar na busca da verdade. Esta impunidade que se prolonga no tempo, suscita uma profunda desolação institucional e fere os valores de uma democracia cada vez mais fraca.

Fora daquele circulo onde aninha a comercialização da mentira, a população fica como refém. Sem regras gerais de convivência que se cumpram na esfera do poder, a lei parece destinada a ser profanada. Com a morte do promotor, morreu um pouco a justiça mesma.

Esta semana, Alberto Dines, no Observatório da Imprensa, falou com ironia da "superioridade argentina". Vinte anos depois, a corrupção e a impunidade parecem seguir ganhando uma batalha, onde as regras de jogo não parecem interessar. A desordem está legitimada.

Como em um deserto cheio de oásis, faz vinte anos que a sociedade argentina, sedenta, peregrina até aquela mulher chamada Justiça. Ela jamais está ali, sempre se afasta. Hoje, no meio da desesperança, parece uma mulher inalcançável.

À força de mortes e verdades silenciadas, a democracia argentina dessangra e parece voltar para trás. Só resta andar.

NICOLÁS JOSÉ ISOLA, 34, filósofo argentino, é pesquisador e doutor em Ciências Sociais Twitter: @NicoJoseIsola

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