Folha de S. Paulo


Editorial: A ameaça da mordaça

Vez ou outra algum juiz brasileiro, não sem a cumplicidade de autoridades investigativas, decide mandar às favas a liberdade de expressão e a de informação, garantias constitucionais das mais importantes para as democracias.

O episódio mais recente foi protagonizado por Dasser Lettiere Jr., da 4ª Vara Federal de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. O magistrado determinou a quebra do sigilo telefônico de todos os ramais da Redação do "Diário da Região" e do repórter Allan de Abreu.

Lettiere Jr. considerou a medida necessária para identificar a fonte de que o jornalista se valeu ao publicar reportagens sobre a Operação Tamburutaca, deflagrada pela Polícia Federal em 2011. Naquele ano, Abreu viu-se indiciado sob a suspeita de divulgar informações protegidas por segredo de Justiça.

São muitos os equívocos cometidos pelos agentes públicos nesse caso, mas uma coisa é certa: com sua caneta, o juiz rasurou dois mandamentos da Constituição como se pertencessem a uma simples lista de resoluções de Ano-Novo.

Para os fins do processo, tornou letra morta o inciso XIV do artigo 5º, pelo qual "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional", e a regra no artigo 220, que veda "embaraço à plena liberdade de informação jornalística".

Não é necessário ter frequentado cursos de direito para interpretar esses dispositivos. Mais difícil é identificar os motivos que levam profissionais do mundo jurídico a fingir que não entendem, ou a desrespeitar de modo explícito, enunciados tão categóricos.

Entende-se que investigadores queiram manter secretos os planos para uma investida policial. Mas esse argumento tem pouca valia, já que as reportagens de Allan de Abreu circularam mais de um mês depois de iniciada a operação.

Há, de todo modo, uma questão de fundo. O dever de preservar o segredo recai sobre os funcionários do Estado, e não sobre cidadãos no uso do direito de expressão; a sanção, assim, jamais deve se dirigir a quem publica notícias.

Ao mesmo tempo, o sigilo de fonte constitui ferramenta indispensável para a plena liberdade de informação. Sem essa garantia, se calariam todos os que, sabendo de fatos de interesse público, gostariam de divulgá-los sem revelar a própria identidade. Inúmeros escândalos de corrupção deram-se a conhecer dessa maneira.

A revisão dessa decisão esdrúxula, portanto, torna-se um imperativo. Se ela prosperar, estará aberto mais um precedente perigoso para que pilares da democracia sejam solapados.


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