Folha de S. Paulo


Ricardo Toledo Silva: Crise da água e rigor técnico

"Senhor –falou o Cordeiro–, encareço a Vossa Alteza que me desculpeis, mas acho que vos enganais: bebendo, quase dez braças abaixo de vós, nesta correnteza, não posso sujar-vos a água."
La Fontaine, "O Lobo e o Cordeiro"

Na fábula de La Fontaine, a explicação racional do cordeiro não aplaca a voracidade cega do lobo. No debate sobre a escassez hídrica em São Paulo, a racionalidade cada vez mais cede espaço à ideologia. No artigo "A responsabilidade pela crise da água", publicado nesta Folha em 15/10, o vereador Nabil Bonduki (PT) alega suposta incúria das autoridades estaduais no enfrentamento da escassez de água.

A argumentação política reflete orientação partidária do autor; a técnica merece exame mais detido.

A vazão retirada do sistema Cantareira tem sido poupada nos últimos meses em cerca de 10 a 11 m3/s, ou um terço da vazão outorgada de 31 m3/s para oferta em São Paulo.

Medidas de incentivo à redução de consumo, de controle de pressão na rede de distribuição e de transferências de água tratada entre sistemas, propiciadas por investimentos permanentes em controle operacional avançado e tecnologia de informação, têm promovido redução superior à que se poderia obter mediante racionamento em rodízio. Enquanto for possível operar a rede com menos água, mantendo o abastecimento próximo ao normal, é injustificável o racionamento.

Sobre a alegada falta de investimentos anteriores, não se constroem, preventivamente, reservatórios dimensionados para abastecimento pleno em situação de escassez extrema. Investimentos sistemáticos na ampliação da oferta são baseados em probabilidades e em coeficientes de segurança controlados.

Os estudos de 2010/11 sobre deficit de oferta, mencionados e não especificados, são provavelmente partes de análises técnicas que subsidiaram projeto do sistema São Loureço, hoje em obras.

No âmbito da macrometrópole paulista, outros estudos e planos mais recentes apontam para medidas de grande alcance territorial no médio e longo prazo para a segurança hídrica da região.

Sobre os investimentos em redução de perdas, quanto mais baixos os percentuais já atingidos, maiores são os custos de novos controles. Perdas físicas inferiores a 20% denotam um patamar médio a avançado de controle, segundo padrões internacionais, que reconhecem a redução de pressão noturna como procedimento válido. Em situações excepcionais de escassez é recomendável que a redução seja intensificada, como vem sendo feito.

A redução mais intensa mantém a rede cheia, mas a padrões mínimos de pressão. Disso podem decorrer interrupções no preenchimento das caixas-d'água prediais por algumas horas. Mas o consumo final só é prejudicado se a descontinuidade ultrapassar o tempo de esvaziamento das caixas, de 24 horas, ou se a instalação predial não atender aos padrões de norma.

As edificações adaptadas para uso com maior concentração de pessoas do que o previsto e aquelas nas quais, por diferentes razões, não tenham sido instaladas caixas-d'água com volume suficiente são as mais vulneráveis.

Outras dimensões da escassez e das soluções aplicáveis poderiam ser discutidas. Por ora, são suficientes estas. O importante é compreender que o rigor no entendimento técnico da situação, que é grave, não afasta um debate honesto e racional sobre suas dimensões políticas, mas o legitima e o valoriza.

RICARDO TOLEDO SILVA, 63, é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. É assessor técnico da Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos do Governo do Estado de São Paulo

*

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Endereço da página:

Links no texto: