Folha de S. Paulo


Editorial: Tragédia clandestina

Cercado de detalhes chocantes, o noticiário dos últimos dias trouxe à tona uma realidade a que amiúde se faz referência nos debates acerca do aborto, mas sobre a qual ainda pesa espesso véu de abstrações e julgamentos moralistas.

Sabe-se, embora os números sejam pouco fidedignos, do grande contingente de mulheres vitimado pelos maus-tratos e pelas péssimas condições em que operam as clínicas clandestinas de aborto.

A morte de uma jovem de 27 anos, grávida de três meses, no Rio de Janeiro, expõe com clareza o quanto há de desumano numa situação que, na grande maioria dos países desenvolvidos, seria encarada com o respeito inerente aos problemas de saúde pública.

Seu corpo foi encontrado dentro de um carro carbonizado. Ela teria morrido durante um aborto malsucedido, na clínica que sediava as atividades de um falso médico.

Em Niterói, o corpo de uma mulher de 32 anos foi abandonado num hospital público; trazia ainda um tubo de plástico no útero.

Pode-se reprovar, ou não, a escolha de uma mulher quando busca interromper a gravidez. Mas é difícil aceitar que se considere criminosa uma pessoa que nada mais é do que a vítima dos que se aproveitam da clandestinidade para cobrar pelos serviços que prestam sem controle nem escrúpulos.

Enquanto isso, no Rio, desencadeou-se uma investida de repressão ao aborto ilegal. Mais de 50 pessoas foram presas.

Nas piores condições possíveis, mulheres eram tratadas por "verdadeiros açougueiros", diz o delegado. Trata-se, é claro, de punir quem quer que tenha comprovadamente colaborado nessa máquina de violência contra a mulher.

A demanda pelos infames serviços do grupo não cessava de crescer. Certamente é preciso investir mais em campanhas de esclarecimento público e na ampliação do acesso a métodos anticoncepcionais, como a pílula do dia seguinte.

Diminuindo, assim, as gestações indesejadas, há de diminuir também o total de mulheres que, em desespero, lançam mão do aborto, um recurso sempre traumático.

Mas, como indica a experiência de muitos países desenvolvidos, seria o caso de perguntar se não é a clandestinidade que produz o crime, em vez de, como habitualmente se pensa, ser o crime a causa da clandestinidade.

A realização de um plebiscito sobre o tema do aborto ganha em urgência, sem dúvida, quando se vê de perto um drama que autoridades e candidatos –quanto maior sua popularidade nas pesquisas– evitam sistematicamente discutir.


Endereço da página: