Folha de S. Paulo


Ywynuhu Suruí: O primeiro povo indígena anistiado

Nós, Aikewara, povo tupi-guarani conhecido também como "Suruí do Pará", escrevemos este artigo para que todos saibam por que na última sexta-feira, 19 de setembro, nós fomos o primeiro grupo de indígenas considerado anistiado político e por que esse dia é histórico para nós e para os povos indígenas deste país.

Esperamos 40 anos para que o Estado brasileiro reconhecesse a violência sofrida por nós, dentro e fora de casa, sem saber o porquê da presença daqueles homens fardados na aldeia, para "caçar" pessoas –pergunta que eles próprios, nossos pais e avós, se faziam: por que os "marehai" (forma como chamamos os militares na nossa língua) estavam matando aquelas pessoas no Araguaia?

Durante três anos, de 1971 a 1973, os Aikewara viveram assustados quando ouviam qualquer barulho de carro ou avião. Logo pensavam que seriam mortos. Muitos tinham insônia, não conseguiam dormir tranquilos porque o tempo todo eram ameaçados por soldados do Exército brasileiro.

As mulheres ficavam apavoradas ao ouvir a tradução de quem sabia falar um pouquinho de português, de que os soldados estavam ordenando que as crianças se calassem e, se fizessem qualquer barulho, eles matariam todos. E todos os homens adultos da aldeia foram levados para servir de guias para os "marehai" na mata –que conhecemos bem porque é a nossa terra.

Sem comer direito, andando por dias e dias, obrigados a levar cargas pesadas nas costas, aos empurrões, gritos e ameaças, dormindo ao relento na mata e adoecendo.

Por mais que seja feita uma reparação, nunca sairão da memória do povo Aikewara as cenas de terror e tortura que todos na aldeia presenciaram e sofreram no período da repressão à guerrilha do Araguaia, sendo prisioneiros em suas próprias casas, mantidos em cárcere privado, sem direito de buscar o seu próprio alimento. Crianças, idosos e mulheres passavam fome porque lhes fora tirado o direito de ir e vir em nossa própria terra.

Por muitos e muitos anos ouvimos essa história contada pelos nossos avós desde que éramos pequenos. Hoje somos pais e alguns já são avôs ou avós. Agora entendemos por que eles nos contavam. E por que temos que continuar contando por meio de narrativas, maneira como são repassados os ensinamentos e as histórias do povo Aikewara para nossos filhos e netos.

Em meio a tantas lindas histórias que aprendemos ouvindo para poder repassar adiante de geração em geração –para que nunca acabem–, não era dessa maneira que nós gostaríamos de fazer parte da história do nosso país.

É triste saber que para viver na democracia foi preciso lutar e perder tantas vidas. Para ter liberdade foram perdidas vidas de verdadeiros heróis que não podem jamais ser esquecidos –e cujas lutas foram interrompidas com violência e mortes. Graças a essas corajosas pessoas é que podemos nos manifestar para fazer valer nossos direitos à saúde, à educação, à moradia e ao transporte de qualidade, garantidos na Constituição Federal.

Agora reconhecidos como anistiados políticos pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, ainda esperamos a principal reparação que existe, e que é coletiva: a regularização e desintrusão da Terra Indígena Tuwa Apekuokawera, parte do nosso território, excluída há 40 anos. É só com a devolução e proteção do nosso território que poderemos voltar a viver mais tranquilamente, depois de tudo que nossos pais e avós sofreram.

YWYNUHU SURUÍ, 30, é integrante do povo Aikewara e diretor da Escola Indígena Moroneikó, na Terra Indígena Sororó, sudeste do Pará

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