Folha de S. Paulo


Leandro Narloch: Proposta de conciliação

Seria possível haver uma conciliação entre Roger e Marcelo Rubens Paiva? Nas últimas semanas, o cantor e o escritor se apunhalaram pelo Twitter e pela imprensa por causa de opiniões sobre a ditadura militar. Marcelo disse na Flip que Roger faz "uma confusão" ao chamar Dilma de terrorista; Roger respondeu que o jornalista "sofreu uma lavagem cerebral".

Reuniões de conciliação dão certo quando cada parte reconhece uma ou outra razão do adversário e abre mão de pontos em disputa. A discussão entre os dois tem muito espaço para isso.

Roger poderia começar admitindo que sim, condena a morte de Rubens Paiva e os torturadores da ditadura militar. É fácil perceber o tamanho da injustiça. Imagine que você tem 11 anos e é feriado com sol no Rio de Janeiro. De repente chegam uns homens com metralhadoras e levam seu pai para a delegacia. Você nunca mais o vê. Cresce sem notícias, sem poder reclamar. Os homens que mataram seu pai mandam no país.

A tortura é execrável até mesmo em casos de guerrilha, que hoje também envolveria repressão do governo federal. Pessoas envolvidas em luta armada devem ser presas por porte de armas ou incitação à violência: não está na lei que podem ser torturadas ou mortas depois de capturadas.

Por fim, Roger poderia criticar a ditadura por erros econômicos similares ao do governo atual. A ditadura infestou o Brasil de estatais, adotou um protecionismo que fechou o Brasil para o mundo, descuidou das contas públicas e da inflação. Mas melhor deixar isso de lado: talvez Marcelo não goste de ver na ditadura semelhanças ao governo que ele defende.

Marcelo Rubens Paiva também teria muito a reconhecer –mas nada que já não seja óbvio e estabelecido. O principal é que a ideologia que seu pai defendia era um equívoco tremendo. O jornalista poderia admitir ser ingenuidade acreditar que um governo comunista no Brasil não resultaria em fome, desabastecimento e repressão. Pois foi o caso de todas (sim, todas) as experiências socialistas do século 20.

Ou que, em caso de um governo comunista no Brasil, veríamos boa parte da população brasileira fugir para os países vizinhos, como aconteceu da Coreia do Norte para a Coreia do Sul, da China para Hong Kong, da Alemanha Oriental para a Ocidental, de Cuba para os EUA, do Laos e do Camboja para a Tailândia, de Moçambique para a África do Sul (em pleno apartheid).

Com essa atitude, Marcelo Rubens Paiva participaria de um grupo de nobres pessoas que tiveram generosidade para admitir equívocos do passado sem deixar de reprovar a ditadura, como fizeram Fernando Gabeira, Ferreira Gullar e tantos outros. Dar graças a Deus que o Brasil escapou do comunismo não implica defender torturadores e assassinos. Do mesmo modo, condenar a morte de Rubens Paiva e as torturas da ditadura não fará de Roger um esquerdista.

Estamos em acordo? Então bola pra frente, pois já faz algumas décadas que estamos discutindo esse assunto.

LEANDRO NARLOCH, 35, é jornalista e autor de "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" e coautor de "Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo" (ambos pela editora LeYa)

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