Folha de S. Paulo


Investigação de acidente aéreo deve ser sigilosa? Sim

MARCELO HONORATO: OS BENEFÍCIOS DO SIGILO

Para abordar esse tema, precisamos, inicialmente, esclarecer que a apuração realizada pelo Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) em nada se assemelha à apuração policial. Enquanto a investigação aeronáutica visa, unicamente, prevenir novos acidentes, levando-se em conta até mesmo hipóteses, a investigação criminal caminha em outro sentido, em busca de elementos certos de autoria. Uma olha para o futuro, e a outra se concentra no passado.

Isso quer dizer que a apuração do Cenipa não está submetida aos rigores do processo penal –este, sim, deve pautar-se na exatidão das acusações, sem ilações ou probabilidades. Se a investigação aeronáutica se limitar só a elementos comprovados, por certo teríamos muito mais acidentes aéreos, algo bem distante dos atuais índices de segurança.

Isso porque a investigação aeronáutica deixaria de levar em conta todas as hipóteses que rondam um sinistro aéreo. Tais probabilidades devem, obrigatoriamente, ser analisadas pelos investigadores, pois não podemos deixar de prevenir um novo acidente aéreo, mesmo que seja por hipótese –quer dizer, meras suspeitas de insegurança devem ser rigidamente apontadas pelos investigadores.

Não devemos descartar, também, que os acidentes aéreos, por envolverem alta velocidade e grande quantidade de combustível, geralmente têm consequências catastróficas. Isso muito dificulta a reprodução dos fatos, mesmo considerando a existência das caixas-pretas. Logo, as hipóteses sempre estarão a serviço da prevenção de novos acidentes.

Na seara judicial, o quadro é oposto, pois não há espaço para que hipóteses sustentem uma condenação penal, nem mesmo o recebimento de uma denúncia. Daí a preocupação em prover sigilo ao desenvolvimento da investigação aeronáutica, sob pena de violar a tão cara garantia constitucional da presunção de inocência.

Certamente, a maioria da população desconhece que a aviação diminui seus riscos com a colaboração ativa de pilotos, engenheiros, controladores de voo etc. São contribuições como a do piloto que reporta ter esquecido de conferir a pressão dos pneus antes da decolagem; a do controlador de voo que declara não ter alertado a mudança de direção do vento ao piloto –pequenos equívocos, mas de imensa importância para a segurança de voo.

Os profissionais da aviação, porém, só colaboram com as investigações se protegidos pelo sigilo, confiantes de que suas declarações jamais servirão como uma prova autoincriminatória. No processo penal, é garantido ao acusado o direito ao silêncio, que evita esse efeito incriminatório. Já na investigação aeronáutica, a inação representa uma lacuna insuperável, pois a informação silenciada poderá ser, justamente, aquela que iria prevenir um futuro acidente.

Advirta-se que, ao final, a investigação aeronáutica recebe ampla divulgação, pois já alicerçada em fundamentos exaustivamente estudados e isenta de referências pessoais.

A investigação aeronáutica também mergulha na intimidade de cada tripulante –a sua situação financeira e familiar, por exemplo– e analisa as gravações do voo, a exemplo das últimas frases dos aeronavegantes, cujo sigilo é um dever, em respeito aos seus entes queridos.

Percebe o leitor que o Estado democrático de Direito não se apoia só na absoluta publicidade das ações do Estado. Apoia-se também na garantia a direitos fundamentais –como a vedação à autoincriminação, a proteção à presunção de inocência, intimidade, memória de familiares e, finalmente, talvez a de maior envergadura, a garantia à segurança no transporte aéreo, assentada numa investigação colaborativa e especulativa, sem as amarras do processo penal e que traga muitos ensinamentos, na esperança de que novos acidentes não voltem a ocorrer.

MARCELO HONORATO, 44, é juiz federal e autor de "Crimes Aeronáuticos" (ed. Lumen Juris, no prelo), e exerceu, na Aeronáutica, a função de investigador de acidentes aéreos

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