Folha de S. Paulo


Juliana Cesario Gomes: Justiça Militar, anacronismo e autoritarismo

Vem ganhando corpo na sociedade brasileira a necessária discussão acerca da competência da Justiça Militar da União para julgar civis. Hoje, encontra-se em curso no Supremo Tribunal Federal a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 289, que busca declará-la incompatível com a Constituição de 1988, por violar a exigência de imparcialidade e independência dos magistrados, corolário do Estado democrático de Direito.

Na ação, argumenta-se que, como parte de um esforço de justiça de transição, deve-se expurgar da atual ordem jurídica brasileira os "entulhos autoritários" da ditadura militar (1964-85).

É verdade que a Justiça Militar não foi inaugurada, no Brasil, com a ditadura militar. Sua origem remonta ao Conselho Supremo Militar e de Justiça, criado em 1808 como parte do Poder Executivo, desempenhando funções preponderantemente administrativas.

O crescimento de suas atividades jurisdicionais levou à redução do número de ministros militares e sua progressiva equiparação com o número de civis, alcançada em 1926.

Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, operou-se a virada autoritária enrijecida durante a ditadura militar, quando o número de ministros do STM (Superior Tribunal Militar), por meio de ato institucional, foi elevado a 15, sendo 10 militares.

Afora as alegações históricas, deve-se questionar o argumento de que a Justiça Federal ordinária não seria capaz de julgar civis acusados de crimes militares em função de sua morosidade e da ausência de expertise em direito militar.

Quanto à celeridade, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2013 os magistrados da Justiça Militar julgaram 37 vezes menos processos que os da Justiça Federal, a um custo por processo 55 vezes mais alto.

Sobre a suposta necessidade de familiaridade com as praxes da caserna, na esfera da Justiça Militar estadual inexiste previsão de julgamento de civis por militares. Ademais, uma Justiça especializada não se confunde com magistrados corporativos. Nesse sentido, a emenda constitucional nº 24/1999 manteve a Justiça do Trabalho, mas extinguiu de sua esfera a representação classista, sob a alegação de que constituía "situação anacrônica e anômala".

Na Corte Interamericana de Direitos Humanos, reiteradas vezes já se afirmou que a Justiça Militar tem caráter excepcional e restrito e que o julgamento de civis deve caber à Justiça ordinária.

A parcialidade da Justiça Militar brasileira foi reconhecida no caso Gomes Lund, em que, para impedir a impunidade de militares envolvidos nas violações de direitos no contexto da guerrilha do Araguaia, a corte determinou que as ações penais de responsabilização deveriam ser processadas e julgadas em foro ordinário.

Importante ressaltar ser insuficiente a proposta de lei que prevê, em primeira instância, o julgamento de civil monocraticamente por juiz-auditor, e não mais pelo Conselho Permanente de Justiça, composto por juiz-auditor e quatro militares da ativa. Isso por três motivos.

O juiz auditor continuaria a atuar sob forte influência do ambiente militar regido pelos princípios castrenses da hierarquia e da disciplina, utilizando-se da legislação militar editada no auge dos anos de chumbo. Em segunda instância, permaneceria o STM, composto por cinco civis e dez militares da ativa, sujeitos ao Estatuto dos Militares e dos quais não se exige formação jurídica.

Por fim, simbolicamente, seria negada à sociedade brasileira a oportunidade de consolidar seu rompimento com as amarras do autoritarismo e seu compromisso com a democracia e os direitos fundamentais.

JULIANA CESARIO ALVIM GOMES é advogada da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ e professora de direito constitucional da UERJ e da UFRJ

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