Folha de S. Paulo


Jeanne Marie Gagnebin: Liberdade de expressão e patrimônio moral

O semestre letivo não começou bem na PUC-SP. Afora a má surpresa com o corte de várias turmas, três professores do Departamento de Filosofia sofrem procedimento de investigação preliminar pela assim chamada "Comissão Sindicante Processante Permanente" da Reitoria.

Os colegas são professores e pesquisadores excelentes: Jonnefer Barbosa, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz e Peter Pál Pelbart. A investigação , que tem por única "prova" um vídeo disponibilizado no YouTube, enuncia a suspeita de que eles teriam convidado, idealizado e divulgado a encenação do diretor de teatro Zé Celso Martinez Corrêa ocorrida na universidade em 27/11/2012.

Na época, alunos, professores e funcionários protestavam contra a nomeação, por d. Odilo Scherer, da candidata colocada em terceiro lugar na eleição para reitor, quebrando uma tradição democrática de respeito à vontade da maioria da comunidade da PUC. Ademais, levanta-se a acusação de que eles teriam incitado os alunos a assistir à "performance" de Zé Celso no pátio da Cruz e desrespeitado "o patrimônio moral e cultural da PUC-SP".

Atualmente, circulam nas redes sociais várias cartas de apoio aos professores. Foram assinadas dentro e fora do Brasil por pessoas tão diversas como o filósofo italiano Antonio Negri, o secretário de Estado da Cultura de São Paulo, Marcelo Araujo, e a artista Tomie Ohtake.

Quero aproveitar para fazer três observações. Em primeiro lugar, chama a atenção o prolongado intervalo entre 27/11/2012 e o início da investigação, lapso que não parece causado somente pela lentidão dos processos administrativos, mas pela dificuldade em recolher alguma prova consistente -lido de outra maneira, por um desejo de punir maior que o de corrigir eventuais danos. Essa impressão é reforçada pela escolha de três figuras nas imagens do YouTube, quando havia, no mínimo, 200 pessoas no vídeo.

Em segundo lugar, a acusação de "incentivo a todos os presentes, antes e durante a investigação" -mais especificamente, de ter abusado do ofício de professor para desviar jovens alunos-, desconhece o fato de que nenhum aluno precisa de um professor para saber da presença na PUC de um dos mais renomados diretores de teatro. Essa suspeita não reconhece nem o respeito que um professor tem por seus alunos nem a autonomia destes, que já sabem caminhar pelas próprias pernas.

Enfim, a questão do "patrimônio moral e cultural" da PUC. Que me seja permitido exprimir certo mal-estar diante dessa expressão. Quando os alunos convidam o Zé Celso, ele não pode vir? Goste-se ou não de suas apresentações, ele é uma figura criativa e polêmica essencial da história do teatro brasileiro. Ele sempre provoca. O "patrimônio moral e cultural" seria tão frágil assim que não poderia suportar nenhum questionamento teórico ou artístico?

Leciono na PUC-SP há quase 35 anos, gosto desta universidade católica -segundo a etimologia grega, universal (kat'holos)-, que acolheu professores cassados durante os anos de chumbo, que emprestou seu teatro para a encenação de "Morte e Vida Severina" e seus locais para congressos proibidos de estudantes durante a ditadura militar. Esses atos manifestam uma liberdade e um desapego caros a muitos cristãos.

Não seriam mais essas qualidades que deveriam orientar a vida universitária na PUC?

JEANNE MARIE GAGNEBIN, 65, é professora titular de filosofia da PUC-SP e autora de "Lembrar Escrever Esquecer" (Editora 34)

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