Folha de S. Paulo


Jorge Edwards: Caminhos indiretos

A história é sempre imprevisível. Há somente um traço seguro: sempre zomba das teorias. Não há filosofia política que dure cem anos, como mostra o marxismo-leninismo. As ideologias, por sua vez, não têm data de validade. De alguma maneira, tudo prossegue e tudo retorna, ainda que com nomes diferentes e forças amortecidas, dissimuladas.

Acreditávamos que o castrismo desapareceria com o fim do bloco soviético. A revolução se retraiu, entrou em fase defensiva, mas de alguma maneira prossegue. Raúl Castro não é igual ao seu irmão Fidel, mas sabe resistir e, sobretudo, mudar algumas coisas para que nada mude, como o personagem de Lampedusa. A arte de mudar sem mudar demais é prima-irmã da arte de perdurar.

O castrismo renasce hoje, à sua maneira, na forma do chavismo, das políticas bolivarianas. Quando Fidel Castro, em seus anos de ascensão, dizia que a cordilheira dos Andes seria a Sierra Maestra da América, pensava nos heróis da independência do continente, homens como Simón Bolívar. E a Venezuela, claro, não é uma ilha: é um enorme território continental dotado de formidável reserva petroleira.

Podemos nos perguntar se essa é uma segunda etapa da revolução continental. Desde os anos iniciais, Castro sabia que o castrismo em um só país estaria condenado. Por isso converteu-se em apaixonado proponente das saídas, das intervenções, das aventuras externas. Não acreditava de verdade na guerrilha de Che Guevara na Bolívia e não tinha confiança alguma na revolução pacífica e legal de Salvador Allende no Chile. Se o voto servisse a alguma coisa, muito bem, mas sempre com a companhia do fuzil.

O surgimento de Hugo Chávez na paisagem revolucionária foi providencial: homem de armas, orador popular e populista, fornecedor de torrentes de petrodólares. A aliança entre Castro e Chávez, dissimulada, astuta, foi sólida desde o primeiro momento. E não demoraram a surgir comparsas, imitadores e seguidores. Se a Revolução Cubana se havia esgotado, a de Chávez, na Venezuela, a um só tempo vociferante e discreta, facilitada pelo fim da Guerra Fria, servia como continuação lógica. Passamos da Sierra Maestra às planícies venezuelanas e à cordilheira andina.

A teoria marxista-leninista perdeu o lugar, como os tempos exigiam, e surgiu a Alba (Alternativa Bolivariana para a América). Foram terras de promissão, democracias diretas, populares, herdeiras todas dos mundos pré-colombianos. Surgiu o Estado plurinacional, que talvez pudesse ter vida longa.
Será que isso tudo significa uma divisão definitiva de nosso mundo criollo, ibero-americano, ou será possível construir alguma forma de unidade na diversidade, um novo consenso, uma democracia mestiça, herdeira distante, diferente, autônoma, das origens iluministas, liberais, atlânticas, europeias? A nossa história, desde suas origens, desde a emancipação colonial, é uma história de enigmas, desafios, rupturas, contradições profundas.

Essa história não terminou. Se o Brasil retomar seu ritmo de crescimento mantendo a estabilidade política, se a Argentina superar a crise endêmica, se a Aliança do Pacífico, entre Chile, Peru, Colômbia e México, avançar, podemos imaginar alternativas aceitáveis.

Mas nenhum de nós pode baixar a guarda. Somos terras de acidentes e surpresas. E de fascinantes possibilidades. Quanto aos ditadores, estes não cansam de ressurgir sob novos disfarces. Resta-nos apenas expô-los. Pode ser que se convertam em defuntos, mas ainda assim persigam os vivos sem descanso.

Como a antiga Venezuela se transformou na atual? É um processo que requer longa explicação, mas não é pura literatura, não é realismo mágico. O que se demonstra uma vez mais é que as ditaduras pertencem à esfera das soluções falsas, aparentemente fáceis, mas repletas de armadilhas. São soluções que nada solucionam: nossos anacronismos, nossas antiquadas deficiências.

JORGE EDWARDS, 83, escritor e diplomata chileno, foi embaixador em Cuba e na França. É autor de "A Origem do Mundo" e vencedor do prêmio Miguel de Cervantes de literatura

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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