Folha de S. Paulo


Bruno Shimizu e Patrick Cacicedo: Pelo fim da revista vexatória

Dona Maria, moradora da periferia de São Paulo, viaja centenas de quilômetros todos os finais de semana para visitar seu marido, que está preso. No dia da visita, é obrigada a se despir, abrir a vagina com as mãos na frente de agentes penitenciárias e outras mulheres, fazer força como se estivesse dando à luz, agachar nua três vezes de frente e de costas sobre um espelho e sentar-se nua sobre um banquinho, que contém um detector de metais.

A invasão de seu corpo é acompanhada por seu filho João, de 6 anos. Depois de assistir a tudo o que é feito com sua mãe, sem entender o que está ocorrendo, mas debulhando-se em lágrimas pela situação aterrorizante, João é submetido à violência parecida.

A jornada de dona Maria é repetida semanalmente por milhares de pessoas Brasil afora. Só no Estado de São Paulo, o corpo de mulheres, homens, crianças e idosos é invadido mais de três milhões e meio de vezes por ano em revistas para entrada nas unidades prisionais. Em 99,97% dos casos, nenhum objeto proibido é encontrado, conforme dados oficiais. Isso não significa que nos 0,03% dos casos restantes os objetos encontrados sejam propriamente ilícitos, pois incluem-se nesse percentual as apreensões de objetos como alimentos, moedas etc. Além da revista vexatória, todas as pessoas também passam por detectores de metais extremamente sensíveis, de modo que é impossível a entrada de arma, celular ou qualquer objeto metálico por meio das visitas. Se entram objetos proibidos em unidades prisionais, não é a revista humilhante que os impede. A conclusão lógica é que a revista vexatória não atinge os fins a que supostamente se destina.

Por ter cometido o "crime" de amar uma pessoa presa, dona Maria foi condenada a ser semanalmente estuprada pelo Estado. O pequeno João, por sua vez, foi condenado a assistir a tudo semanalmente, o que configura tortura psicológica, antes de ser ele próprio submetido à violência. Em ambos os casos a pena é perpétua, pois os dois carregarão para o resto de suas vidas as memórias dos dias de horror.

Se causa estranheza alguém ser condenado por amar ou por existir, não menos estranho é o fato da revista vexatória não ser permitida pela Constituição, nem por qualquer outra lei brasileira.

A dor de dona Maria, que por anos ficou invisível, se fez sentir naqueles incansáveis defensores dos direitos humanos e ecoou por toda a sociedade. Diante disso, o Senado Federal e a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovaram leis que proíbem de a revista vexatória. Para que entre em vigor, é necessário que a Câmara dos Deputados aprove o projeto e a presidente o sancione. Já no Estado de São Paulo, que concentra mais de um terço das pessoas presas, a lei já foi aprovada pelo Legislativo e aguarda apenas a sanção do governador.

A tecnologia necessária para que ocorra a revista sem ferir a dignidade das pessoas já existe, são os scanners corporais. Com efeito, o uso desse tipo de equipamento seria inegavelmente mais eficiente para evitar a entrada de objetos ilícitos. Contudo, não se pode afirmar que tal contratação seja condição indispensável à cessação de tamanha violação de direitos, como revela a experiência do Estado de Goiás. É certo que argumentos orçamentários não podem justificar tal violência à dignidade humana.

O fim da revista vexatória é urgente, pois beneficiará os presos, os familiares, os agentes penitenciários e a própria segurança. Aguarda-se, assim, a aprovação do projeto de lei do Senado e a sanção do projeto estadual, já aprovado no Legislativo, pondo fim a essa barbárie indigna e inútil.

BRUNO SHIMIZU, 29, e PATRICK CACICEDO, 31, são defensores públicos do Estado de São Paulo e coordenadores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo

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