Folha de S. Paulo


Roberto Delmanto Junior e Vicente Bagnoli: Copa do Mundo e luta contra a corrupção

Embora o caos alardeado por muitos para a Copa do Mundo felizmente não tenha se concretizado, as profundas cicatrizes expostas com os protestos de milhares de brasileiros desde o começo do ano continuam a pairar como nuvens carregadas no horizonte.

Mas por que protestos, se um país deveria naturalmente se entusiasmar ao sediar uma Copa? Por que tanta indignação se estamos entre as oito maiores economias do mundo e assistimos, nos últimos anos, ao aumento do poder de compra das classes mais pobres?

Parece claro que a resposta repousa na grande insatisfação popular com a baixa qualidade de vida. Por mais que as condições tenham melhorado, nossos problemas são crônicos: milhões vivem em favelas sem saneamento básico, são atendidos nos corredores de hospitais públicos, não têm educação de qualidade, creches para os filhos ou transporte digno e estão, além disso, sujeitos à falta de segurança pública.

Muitos ficaram indignados com o gigantesco custo que pode passar de R$ 30 bilhões, financiado pelo governo, para a construção de 12 arenas (algumas no meio do nada) e de alguma infraestrutura de transporte (sendo que a maior parte nem sequer ficou pronta). Ainda que o governo afirme que esse dinheiro "retornará", e que "não é gasto, mas investimento", a percepção geral é que o aporte poderia ter financiado obras mais importantes para a população. A isso, somam-se recorrentes escândalos de corrupção em todos os níveis de governo, independentemente de partidos. E é a corrupção, sem dúvida, a causa histórica para que o brasileiro não tenha do Estado o devido retorno pelos altíssimos impostos que paga.

Por sua vez, em razão de tratados internacionais como a Convenção Interamericana contra a Corrupção da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada em 2002, a Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional, subscrita em 2004 e, com especial destaque, a Convenção para o Combate da Corrupção da Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica (OCDE), assinada em 2000, o Brasil tem adotado drásticas mudanças em sua legislação, ajustando-se à padronização internacional para prevenir e julgar crimes de corrupção.

O Congresso brasileiro tem, assim, introduzido transformações em nosso sistema normativo. Criou o crime de corrupção de funcionário público estrangeiro, instituiu e ampliou a abrangência do crime de lavagem de dinheiro, o acordo de leniência no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e a delação e colaboração premiada no âmbito criminal. Anos atrás, essas medidas seriam inimagináveis.

Por fim, e às vésperas da Copa, foi editada a Lei Anticorrupção, dotando a União, os Estados e os municípios de enorme poder para imporem punições a empresas por atos de corrupção, independentemente da responsabilização criminal de seus executivos. Contudo, essa pulverização de órgãos com poder punitivo poderá, ao contrário de combater, fomentar mais corrupção por parte de maus funcionários públicos se não houver controle, rígidos procedimentos administrativos e total transparência.

A OCDE, que tem tido intensa atuação mundial com coleta de dados e publicação de índices sobre transparência, tem sido a principal fomentadora dessas alterações legislativas no Brasil, pregando a responsabilização das empresas por atos de corrupção, programas de delação premiada e o aumento do poderio de agências governamentais para impor pesadas multas em casos de corrupção. Além disso, a OCDE vem emitindo diretrizes a serem adotadas por empresas, para criarem departamentos de vigilância de seus funcionários, preservar documentos, estabelecer práticas para dificultar o chamado desconhecimento intencional de possível corrupção etc.

A pressão internacional contra a corrupção tem sido forte, não só diante do imperativo ético de se combater a corrupção, mas também para preservar a livre concorrência de muitas empresas que congregam gigantescos grupos estrangeiros, cuja participação no mercado interno brasileiro tende a ser hegemônica. Sem corrupção, prevalecem as empresas mais eficientes, com redução de custos para o Estado e para o cidadão.

Como se vê, na última década o direito penal e administrativo vêm sofrendo profundas transformações fomentadas pelas grandes potências econômicas diante da globalização. As mudanças têm cunho pragmático e promovem a expansão dos poderes de fiscalização e de punição, por parte do Judiciário e do Executivo. Só esperamos que não haja um "gol contra" com a hipertrofia do poder punitivo e da instalação de um Estado policialesco, o que já é um risco concreto que requer muita atenção.

Muito mais importante do que a vitória na Copa, que já se foi, é a batalha, com equilíbrio e respeito aos direitos fundamentais, contra a corrupção. A população, com as grandes manifestações que tomaram conta do cenário nacional antes da Copa, também está engajada nessa batalha.

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 45, advogado criminalista e conselheiro da OAB-SP, é doutor em direito pela USP
VICENTE BAGNOLI, 38, professor da Faculdade de Direito Mackenzie, é presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica da OAB-SP

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