Folha de S. Paulo


João Capiberibe: De Rubens Paiva a Amarildo

O fim da ditadura civil-militar no Brasil está perto de completar 30 anos, mas até agora prevalecem versões edulcoradas daquele período. A história do que de fato aconteceu está longe de ser contada em sua totalidade. O silêncio e a impunidade impediram que a verdade viesse à tona.

Mas a muralha de segredo construída ao longo desses anos começou a ruir. A instituição da Comissão da Verdade e a luta pela revisão da Lei de Anistia contribuíram para abalar o sigilo com o qual os responsáveis pelas torturas praticadas em nome do Estado ainda se protegem. Em poucos meses, houve um avanço notável na elucidação de crimes perpetrados pela ditadura.

Inicialmente, Cláudio Guerra, ex-policial do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) capixaba recrutado pelos militares, confessou sua participação no desaparecimento e assassinato de vários presos políticos, muitos incinerados em uma usina de cana de açúcar. Em seguida, e pela primeira vez, um oficial do Exército, Paulo Malhães, confessou na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro que torturou e assassinou inúmeros opositores à ditadura, além de narrar com frieza crimes inqualificáveis cometidos em nome da pátria. Malhães foi assassinado dias depois, em circunstâncias obscuras que estão sendo investigadas.

Finalmente, no dia 25 de maio, dois outros eventos fizeram avançar a verdade. No primeiro, o torturador Riscala Corbaje, vulgo "Nagib", oficial reformado da Polícia Militar, confessou ao Ministério Público que foi chefe de equipe de torturas do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) do Rio e disse que torturou mais de 500 pessoas em dois anos.

No segundo, a Justiça Federal do Rio aceitou uma denúncia do Ministério Público contra cinco militares acusados por tortura, assassinato e ocultação do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva, dentro do DOI-Codi, em 1971. O general José Antônio Nogueira Belham, os coronéis Raymundo Ronaldo Campos e Rubens Paim Sampaio e os sargentos Jurandyr e Jacy Ochsendorf de Souza serão julgados por crimes contra a humanidade.

Vale lembrar que, até o dia 16 de maio de 2012, quando foi instalada oficialmente a Comissão Nacional da Verdade, prevalecia a versão contada pelos defensores do regime civil-militar.

As estarrecedoras revelações feitas por vários elementos ligados à repressão colocam na ordem do dia a necessidade de revisar a Lei de Anistia, de maneira a adequá-la à Constituição e à jurisprudência internacional, a qual reza que não há perdão para crimes de tortura e outros atentados contra os direitos humanos. Da forma como está, a Lei da Anistia coloca o Brasil como violador de direitos frente à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O projeto de lei nº 237/13, que tramita no Senado, altera o parágrafo relativo aos crimes conexos da Lei de Anistia e acaba com o perdão aos crimes cometidos por agentes públicos, fardados ou não, contra pessoas que se opunham à ditadura de qualquer forma. O texto ainda extingue de forma retroativa a prescrição desses crimes, o que poderá levar torturadores aos tribunais.

Somente quando aprovarmos a revisão da Lei de Anistia romperemos com as práticas da ditadura como a tortura e o desaparecimento que, sem punição, perduram e são praticados hoje, sistematicamente, por uma grande parcela de policiais civis e militares, principalmente contra cidadãos pobres, negros e moradores da periferia.

O caso do pedreiro Amarildo é um paradigma de como a tortura e a ocultação de cadáveres continuam a ser praticados, com os mesmos instrumentos que foram usados pela repressão dos generais.

João Capiberibe, 67, senador (PSB-AP), é presidente da Subcomissão da Memória, Justiça e Verdade do Senado. É autor do livro "Florestas do Meu Exílio"

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