Folha de S. Paulo


Fernando Rossetti: A vanguarda do atraso

A senadora e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), Kátia Abreu (PMDB-TO), em coluna nesta Folha ("O verde que escraviza", 03/5), acusa o Greenpeace de propor um modelo de produção agrícola em que não há espaço para a liberdade e para o indivíduo.

Tal atribuição é absurda. Em recente visita ao Brasil, o diretor-executivo internacional do Greenpeace, Kumi Naidoo, defendeu a transição para a agroecologia, e não para "um paraíso verde, cheio de escravos", como a senadora afirma.

A agroecologia permite maior diversidade de culturas, o que significa mais qualidade para a lavoura e a diminuição das perdas provocadas pelas pragas que atingem a monocultura. Só a praga ferrugem asiática, por exemplo, que atinge a produção de soja, resultou em perdas de US$ 25 bilhões nos últimos dez anos para o Brasil.

O problema da senadora é que ela mantém com o Estado uma relação oportunista. Acredita que este existe para satisfazer seus desejos e os dos grupos mais atrasados da agricultura nacional, defendendo sua mão pesada quando é para proteger seus interesses. Já quando se sente ameaçada –por exemplo, quando o Greenpeace pede a ação do Estado para proteger o ambiente– ela o ataca.

A agroecologia é acusada pela senadora de propor que o Estado tome as terras de seus proprietários para distribuí-las entre os pequenos produtores. Irônico ou não, isso já vem sendo feito no país. As terras saem do controle do Estado para irem para as mãos de particulares, só que apenas dos grandes produtores e latifundiários. Vale lembrar o que aconteceu em 2009, quando o governo editou a medida provisória nº 458, muitíssimo defendida pela senadora, conhecida como MP da Grilagem por permitir a legalização da invasão de terras na Amazônia.

Foram 66 milhões de hectares, um território igual ao da França, distribuídos para particulares, configurando um estímulo permanente para que leis sejam confrontadas, florestas sejam destruídas e índios e trabalhadores rurais sejam desrespeitados.

Outro fato memorável relacionado à MP da Grilagem é que a senadora Kátia, esta ferrenha defensora da liberdade, justamente perdeu um processo contra o Greenpeace no qual pedia indenização por danos morais após protesto em que era chamada de Miss Desmatamento. A decisão unânime dos desembargadores indicou que "não houve exercício abusivo da liberdade de manifestação do pensamento e da expressão" e que "a liberdade de pensamento não pode ser tolhida nesse caso, já que atende plenamente ao interesse da sociedade".

Falando em "paraíso verde, cheio de escravos", é a senadora Kátia quem tem empregado esforços para alterar a PEC (proposta de emenda constitucional) do Trabalho Escravo e para barrar a Lista Suja do Trabalho Escravo no Supremo Tribunal Federal. Para engrossar o caldo, a CNA também se opôs à formação de um cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravos.

Além disso, ao opor-se às atribuições da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de controlar o uso de agrotóxicos no país (em 2013, foram consumidos 1 bilhão de litros no Brasil, uma cota per capita de 5,2 litros por habitante, das maiores do mundo) e ao afirmar que milhares de brasileiros que ganham salário mínimo precisam se alimentar com agrotóxicos, fica claro, que, para a senadora, o Estado não serve à defesa da sociedade civil e dos indivíduos. O que ela quer, na verdade, é que este atenda aos interesses da vanguarda do atraso da agricultura brasileira, da qual é líder.

FERNANDO ROSSETTI, 52, é diretor-executivo do Greenpeace Brasil

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