Folha de S. Paulo


Haroldo Pinheiro: Bom senso nas licitações

Imagine o governo do Estado de São Paulo contratar uma extensão do metrô apenas com base em um anteprojeto. Ou a prefeitura da capital licitar creches sem nada opinar sobre os materiais utilizados.

Por mais estranho que pareça, esse cenário não é fantasioso. É o que poderá ocorrer se o Senado aprovar a medida provisória nº 630/13, que amplia para todas as obras de engenharia e arquitetura, de todas as esferas administrativas, o RDC (Regime Diferenciado de Contratação de Obras Públicas), criado inicialmente apenas para as "obras emergenciais" de responsabilidade da União.

O polêmico RDC permite a "contratação integrada" das obras públicas, deixando com a empreiteira a incumbência de projetar, construir, fazer os testes e outras operações inerentes ao empreendimento. Em outras palavras, a contratação da obra é feita antes de existir projeto. Sem um projeto completo, elaborado antecipadamente à licitação, a administração fica sem parâmetros orçamentários para garantir a qualidade da obra, o preço justo e para controlar o aumento de custos.

No requisito transparência, a medida provisória contém dois malefícios. A regra da contratação por técnica e preço, prevista na lei nº 8.666/93, que regula as licitações, foi mantida, mas ficou facultada ao Executivo a dispensa do critério técnico, desde que haja argumento para justificar. Qual argumento seria aceitável? Justificar para quem? Antes ou depois do ato consumado?

Mais grave ainda é o item que especifica que "o valor estimado da contratação integrada será calculado com base no praticado pelo mercado, pago pelo governo em licitações liminares ou na avaliação do custo global da obra, examinada por orçamento sintético ou por estimativa". Em outras palavras, dispensam-se os parâmetros dos orçamentos das licitações de obras e serviços dados hoje pelo Sinapi (Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil) e do Sicro (Sistema de Custos de Obras Rodoviárias), também utilizados pelos órgãos de fiscalização para analisarem possível sobrepreço ou superfaturamento. E o argumento, pasme, é justamente o de que, como fica ao encargo do vencedor da licitação a elaboração dos projetos básico e executivo, não faria sentido utilizar tais sistemas como base.

Além de tudo, dispensa-se o contratado da obrigação atual de detalhar os quantitativos e custos unitários da obra, com a simplória alegação de que cabe ao contratado o risco integral da execução das obras e serviços. Somos contra a concentração das funções de projetar e construir nas mãos de uma única empresa ou consórcio.

Em razão disso, insistimos na tese de que, para obras públicas "quem projeta não constrói, e quem constrói não projeta". Agora, lamentavelmente, precisaremos ampliar o conceito para "quem projeta não constrói, quem constrói não projeta, e quem projeta ou constrói não faz manutenção ou operação da obra".

Explica-se: não bastasse tudo o que já foi dito, a medida provisória ainda inclui no pacote da "contratação integrada" a possibilidade de o empreiteiro realizar a manutenção e/ou operação da obra por até cinco anos. Uma parceria público-privada embutida no documento.

A medida atropela, de forma açodada, um projeto que tramita no Senado para a revisão da lei nº 8.666/93, algo que realmente precisa ser feito. O bom senso indica que os senadores deveriam discutir a MP 630/13 em conjunto, do que resultaria em nova legislação de licitações do país, consolidada em todos os aspectos.

O assunto pode parecer árido. Mas, em poucas palavras, pode significar que estamos entregando tudo aos empreiteiros. Inclusive os espaços públicos de nossas cidades.

A 8.666/93 surgiu em meio à CPI dos Anões do Orçamento, que investigou 37 parlamentares, cassando o mandato de seis, por fraudes envolvendo empreiteiras. Vamos pagar para ver uma CPI dos Grandalhões?

HAROLDO PINHEIRO é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR)

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