Folha de S. Paulo


Noemi Jaffe: Teimosa humanidade

Não se trata mais de responder às falácias generalistas do colunista Luiz Felipe Pondé, que escreve às segundas-feiras no caderno "Ilustrada". Seria atender exatamente ao desejo, implícito em suas acusações, de polemizar gratuitamente.

O caso, agora que todos os limites de respeitabilidade foram ultrapassados, é falar não sobre o que ele escreve, mas como despeja seus impropérios. Trata-se de leviandade –um tratamento ligeiro, vão e vazio com relação à linguagem, ao próximo e a temas a que a humanidade teima em dar seriedade para continuar se considerando humana.

Há tempos que o colunista tripudia, sem graça, daquilo que chama de "querer o bem", "querer melhorar ou mudar o mundo". Em seu mais recente artigo ("Por uma direita festiva", 21/4), chega a dizer que falas como "o capital mata crianças de fome na África" servem para "pegar" mulher.

O colunista acredita se valer de falas pretensamente engraçadas, que na sua cabeça reproduzem o discurso de uma esquerda pasteurizada, para novamente ridicularizar quem se preocupa com a fome na África. Seria desperdício exemplificar outras falas da suposta esquerda que o colunista, cafona e infantilmente, procura reproduzir.

Gostaria de discutir a leviandade do tratamento jocoso às ideias de "fazer o bem" e "querer um mundo melhor", tratadas como típicas de uma esquerda cujo maior desejo é "pegar mulher". Parece que esses pensamentos nunca passariam de inocência ou demagogia disfarçada, em sua visão pretensamente schopenhauriana, machadiana ou rodrigueana de alguém cuja maturidade filosófica o levou a saber que nada nunca muda para melhor.

Schopenhauer fala, em seu conceito de "ética metafísica", do fenômeno da compaixão, ou identificação total com a dor do outro, o que representaria a afirmação plena e consciente do "querer". Nelson Rodrigues dizia que até o mais descarado canalha deve ter seus momentos de compaixão, sonho, amor ou pena. Machado de Assis, o que é nada menos que óbvio para qualquer bom leitor de sua obra, é sempre dialeticamente pessimista. Ou seja, seu pessimismo de base comporta inevitavelmente uma denúncia ou um inconformismo moral.

Provavelmente, os três autores seriam considerados pelo colunista leviano, a partir desse ponto de vista, como "esquerdinhas interessados em pegar mulher".

O desejo de mudar e de melhorar o mundo não é de esquerda nem de direita. A compaixão pelos que passam fome –malgrado sua ineficácia prática– é um índice mínimo do humano no humano. Mas, para além da ingenuidade desses desejos e sentimentos, há neles também o possível e o praticável.

Hoje, melhorar a vida e o mundo consiste basicamente em preocupar-se em minimizar a desigualdade social e econômica. Desacreditar dessa possibilidade e, pior, desdenhá-la significa justificar o autoritarismo e sua fonte primária, o medo, aquele que mora em todos nós e que só a civilidade e a cultura são capazes de inibir. Ridicularizar o desejo de mudança social, simplificá-lo com o epíteto de "esquerda" e justificá-lo como "para pegar mulher" só revela as frustrações de quem utiliza esses pretensos argumentos.

O melhor, diante de tanto cinismo, seria se calar. Mas devo confessar minha fraqueza.

NOEMI JAFFE, 52, doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, é escritora

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