Folha de S. Paulo


Renato Sérgio de Lima e José Reinaldo de Lima Lopes: O sequestro das polícias brasileiras

Os 50 anos do golpe de 1964 acontecem em meio ao recrudescimento de permanentes crises na segurança pública.

Vários acontecimentos não deixam o tema sair da agenda política desde meados de 2013. Agora, a crise se faz notar na operação das Forças Armadas no Rio de Janeiro e nas várias ameaças de ataques do crime organizado pelo país.

Muito se discute sobre a herança da ditadura em relação às polícias, em especial as militares, que ainda fazem uso da força em seu gradiente máximo, causando um número alarmante de mortes.

Mas quando analisamos a história das polícias no Brasil, percebemos que seus padrões operacionais são mais antigos e remontam ao período de formação da ideia de nação. São fruto de desdobramentos históricos e de combinações econômicas, políticas e jurídicas que sempre atribuíram papel ambíguo às instituições policiais.

As polícias refletem, desse modo, a forma como o Brasil optou por administrar seus conflitos sociais.

Se antes elas serviam aos interesses de elites locais, o fato novo, pós-1964, foi que o regime sequestrou e homogeneizou as polícias brasileiras em nome de um projeto de desenvolvimento autoritário.

Em analogia aos efeitos da síndrome de Estocolmo, que faz vítimas de sequestros se identificarem com os seus algozes e simpatizarem com suas causas, as polícias viram nesse movimento o ambiente perfeito para, após a redemocratização, reforçar suas autonomias em relação ao poder político.

Porém, as ameaças do crime organizado, as altas taxas de crimes violentos e a baixíssima capacidade dos órgãos públicos em prevenir a violência mostram que algo está fora da ordem. As polícias Civil e Militar, insuladas em seus projetos de corporação, não conseguem fazer frente aos desafios contemporâneos de uma sociedade plural e democrática.

A redemocratização do país conseguiu localizar o cativeiro institucional em que as polícias são mantidas reféns, mas não as convence por completo de que a vida e a garantia de direitos são os bens máximos a serem preservados.

Temos polícias com acesso às mais modernas ferramentas tecnológicas e formadas por homens e mulheres altamente qualificados e com preparo intelectual. Muitos policiais têm disposição para inovar e construir padrões de policiamento mais eficientes. Porém, há uma enorme disputa pelo significado de lei, ordem e segurança pública em curso.

Em meio a essa disputa, a democracia não consegue resgatar as polícias da ideologia do "bandido bom é bandido morto", que é muitas vezes reforçada pelo Ministério Público e pelo Judiciário quando estes não condenam os padrões policiais de uso da força como anômalos e inaceitáveis.

Ao largo do notável aprimoramento técnico operacional dos últimos 20 anos, o resultado é que a herança do golpe de 1964 ainda nos impõe um silêncio obsequioso de governos frente ao problema da segurança pública. Silêncio que reforça os ecos autoritários do passado e nos desafia a pensar em um projeto de reforma da polícia que a valorize como uma instituição central do Estado de Direito e da cidadania.

RENATO SÉRGIO DE LIMA, 43, doutor em sociologia pela USP, é vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES, 61, doutor em direito pela USP, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo

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