Folha de S. Paulo


Eloisa de Sousa Arruda: Presente e passado se encontram

Há cinco décadas, um grupo de militares com a complacência de setores conservadores da sociedade civil tomou o poder e derrubou um presidente legitimamente eleito.

Esse fato histórico iniciado em 31 de março foi concluído 1º de abril de 1964. Daquele momento em diante, os país ingressou em longos 21 anos de exceção. Os três Poderes constituídos foram subtraídos de suas funções e o poder passou a ser exercido pelos militares por meio de uma sucessão de atos institucionais draconianos, cada vez mais arbitrários.

Os meios de comunicação, as artes, a intelectualidade foram submetidos à censura. A universidade, enquanto instituição, ficou impedida de se manifestar. Como estudante da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC), tendo ingressado em 1979, ainda respirei os ares da invasão à minha universidade pela Polícia Militar, comandada pelo então secretário da Segurança Pública do Estado, coronel Erasmo Dias.

Na época, uma reunião com mais de cinco pessoas significava uma ameaça ao regime. Muitos que ousaram se pronunciar contra ele foram perseguidos, exilados, torturados e mortos. Artistas, intelectuais e alguns dos mais reconhecidos profissionais, entre os quais cientistas, tiveram que deixar o país.

A economia nacional, depois de um surto de desenvolvimento propiciado por uma conjuntura econômica internacional favorável, caiu em recessão. A dívida externa explodiu e a inflação sem precedentes na história corroeu a moeda. O país só foi se recuperar do baque há 20 anos, com a aprovação do Plano Real e de um conjunto de medidas de recuperação econômica.

A oposição, a despeito de todas as medidas adotadas para enfraquecê-la, se reorganizou conquistou posições e isolou o regime. Foi abrindo caminho com conquistas como a anistia aos presos políticos, o restabelecimento do voto direto, a eleição para o governo dos Estados.

Pelo caminho das urnas, a oposição conquistou espaços no Congresso, elegeu governadores até que, em 1985, 21 anos depois do fatídico golpe e após uma tentativa frustrada de aprovar a Lei Dante de Oliveira para restituir a eleição direta para presidente, um candidato lançado por ela, o senador Tancredo Neves, derrotou o regime em definitivo, ainda que, indiretamente, no Colégio Eleitoral.

A democracia foi aos poucos reconquistada. Em 1988, uma nova Constituição foi promulgada, para substituir um emaranhado de penduricalhos autoritários criados para perpetuar no poder um regime carcomido.

Coube a um governador eleito diretamente pelo povo, um ex-deputado federal cassado pelo regime militar, a iniciativa de sancionar uma lei, de autoria do Executivo, que reconciliava o Estado de São Paulo com o seu passado.

O Estado reconhecia que em seu aparato repressivo, centenas de pessoas haviam passado por maus tratos e alguns como o jornalista Vladimir Herzog e o metalúrgico Manoel Fiel Filho, haviam morrido vítimas de tortura e que por isso seus familiares e os que por ali passaram e sobreviveram, muitos deles com graves sequelas, deveriam ser reparados.

A lei nº 10.726, aprovada por Mario Covas em janeiro de 2001, em um de seus últimos atos como governador, reparava simbolicamente os prejuízos físicos e as vidas ceifadas.

Com a morte de Covas, nesse mesmo mês e ano, a regulamentação da lei e as primeiras indenizações foram pagas pelo seu sucessor e atual governador Geraldo Alckmin, que honrou o pagamento delas até o último lote, em fevereiro de 2012, para os que se inscreveram dentro dos prazos legais previstos.

Foram dispendidos pelo Tesouro estadual R$ 44,765 milhões para pagamento de 1.853 indenizações para ex-presos políticos ou seus familiares. Com essa iniciativa, o Estado de São Paulo procurou a reconciliação com o passado e emblematicamente deu a volta por cima para empreender um novo começo. Uma nova etapa fora cumprida em uma democracia cada vez mais consolidada.

ELOISA DE SOUSA ARRUDA, 50, é secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e professora da Pontifícia Universidade Católica

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