Folha de S. Paulo


Daniel Arnaudo: Desafios para a governança da internet

O debate sobre uma internet livre e igualitária está na pauta das principais democracias do mundo. Questões como o que é o serviço de internet e como ele deve ser regulado estão presentes tanto no Brasil como nos Estados Unidos, países que enfrentaram recentemente uma embaraçosa situação com os escândalos de espionagem da Agência Nacional de Segurança norte-americana, a NSA.

O projeto do Marco Civil da Internet enfrenta dificuldades em sua tramitação por conta de diversos pontos polêmicos, trancando a pauta de votação no Congresso brasileiro desde o ano passado. Dois fatores podem bloquear novamente a sua votação: o PMDB, que não apoia a definição de neutralidade da rede prevista na lei, e a polêmica sobre o artigo 16, que obriga os provedores a manter uma cópia dos dados dos usuários por pelo menos seis meses para eventuais investigações policiais.

O artigo 16 reforça um ponto que tanto preocupa o governo brasileiro: a vigilância. Para evitar que dados de usuários sejam armazenados por provedores de internet, grupos da sociedade civil protestaram através de um "tuitaço" no último dia 11 de março com a hashtag "#16igualNSA", que compara essa parte da lei à postura de monitoramento adotada pela agência norte-americana. Os Estados Unidos enfrentam desafios parecidos: embalados pelos escândalos de espionagem, os congressistas de lá fizeram propostas semelhantes às do artigo 16 do Marco Civil, sugerindo que os provedores de internet, ao invés de a NSA, armazenassem os dados de internautas.

Se no Brasil há a polêmica sobre a neutralidade da rede, o assunto é igualmente controverso para os americanos. Em janeiro, um tribunal dos Estados Unidos derrubou regulamentações da Comissão Federal de Comunicações (FCC), órgão regulador do país, que garantiam os princípios da chamada "internet aberta". A decisão invalidou toda a abordagem jurídica da FCC para forçar provedores como a Verizon, Comcast e Time Warner a fornecer conteúdo de uma forma justa e equitativa. Com isso, as companhias podem bloquear ou diminuir a velocidade de acesso a determinados sites.

As empresas começaram a oferecer serviços de internet na década de 1990, e tanto o Brasil quanto os Estados Unidos se preocuparam com a sua regulamentação. Para classificar tais atividades, o Congresso dos Estados Unidos aprovou em 1996 a Lei das Telecomunicações, que agrupava as empresas em dois pólos: "prestadores de serviços de informação" –à exemplo da America Online e da Compuserve– e "operadoras de telecomunicações", que prestam serviços básicos como telefone e fax, como a AT&T.

No Brasil, a Anatel criou um quadro semelhante em 1995. O Ministério das Comunicações criou uma distinção entre as empresas que prestavam serviços de telecomunicações regulares e as que ofereciam internet, que foram chamadas de Serviços de Valor Adicionado. A raiz do problema com os sistemas legais brasileiro e americano é que eles tiveram dificuldades em distinguir a classificação das empresas.

Provedores de telecomunicações são a peça central das mudanças regulatórias nos dois países. Enquanto nos Estados Unidos companhias como a Comcast e a Verizon processaram a FCC, no Brasil a Anatel representa os interesses de empresas de telecomunicações, particularmente na formação de uma nova legislação como o Marco Civil.

O curioso é que, estimulados pela Anatel, os brasileiros se afastaram de um modelo regulatório que apoia a neutralidade da rede. Os Estados Unidos também estão se distanciando desse modelo, apesar dos esforços de sua agência reguladora.

No Brasil, uma grande resposta a estes desafios vem na forma do Marco Civil da Internet. No sistema federal norte-americano não será possível implementar uma série tão complexa de emendas constitucionais. O que está em questão nos dois países é se a internet será um tipo de serviço básico a que todos deveriam ter direito igualitariamente, como luz, água e transporte, ou se continuará como um serviço que fica à mercê do mercado.

Se o Brasil aprovar o Marco Civil, criará uma forma de governança pioneira da rede, que poderia servir de modelo para o debate da neutralidade e do acesso democrático à internet no mundo todo. Estar conectado se tornaria um direito de todo cidadão em vez de um serviço comercial.

DANIEL ARNAUDO, 30, é pesquisador da Universidade de Washington, especialista em governança da internet. É autor do blog ipoliti.co.

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