Folha de S. Paulo


José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Jr: A primeira Constituição do Brasil

O conselheiro Aires, em seu diário, no dia 25 de março, fez a seguinte anotação: "Era minha ideia hoje, aniversário da Constituição, ir cumprimentar o imperador...".

Personagem fictício do último romance de Machado de Assis, intitulado Memorial de Aires, o velho diplomata do Império, nessa discreta passagem, destacava o significado da Constituição de 1824 para o Brasil do século 19.

Passados 190 anos, a primeira Constituição brasileira, outorgada por um imperador da dinastia portuguesa dos Bragança e casado com uma arquiduquesa do Império austríaco, ainda hoje deixa suas marcas na vida constitucional do país.

Elaborada após o encerramento da assembleia constituinte de 1823, a Constituição imperial foi a resposta possível a um clima de impasse. De um lado, liberais escravagistas eram também defensores do federalismo com um poder central fraco. De outro, conservadores –muitos deles antiescravagistas, como José Bonifácio de Andrada– eram favoráveis a uma monarquia centralizada, a única resposta contra os movimentos separatistas que mostrariam suas garras no período da Regência.

Um exemplo desse equilíbrio paralisante está na escravidão, que se manteve no Brasil a despeito de não figurar no texto constitucional.

Apesar de sua origem autocrática, foi a Constituição votada em todas as Câmaras Municipais brasileiras, como bem recorda Paulo Bonavides, e não se poder negar que foi um texto jurídico de grandes qualidades técnicas, conferindo ao Brasil a estabilidade necessária para atravessar o conturbado século 19.

A comparação entre o Brasil e o destino das demais nações latino-americanas naquele período é capaz de produzir um juízo, no mínimo, mais favorável ao texto de 1824.

A instituição do Poder Moderador –"a chave de toda a organização política" (artigo 98)– foi um dos pontos mais originais da Constituição de 1824. Bastante criticada por historiadores e juristas, ao exemplo de Zacarias de Góis e Vasconcelos, essa fórmula terminou por atenuar os permanentes conflitos horizontais e verticais entre os diversos grupos de pressão e as forças políticas do Império.

Não é equivocado dizer que o Poder Moderador manteve-se no Brasil, ao longo do século 20, mesmo sem previsão expressa nas Constituições republicanas, exercido pelos militares (direta ou indiretamente) ou pelos presidentes civis, por meio do estado de sítio.

Após a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal, ainda que sem convicção, parece ter assumido parte dessas atribuições, que um dia pertenceram ao imperador e que foi uma das razões da própria criação do STF, seguindo-se o modelo norte-americano.

Os alemães, após a constituição democrática de 1949, desenvolveram o conceito de "patriotismo constitucional", como superador da antiga identificação do povo e do Estado com um símbolo de poder ou com um arquétipo de base ideológica, fornecido por grupos da classe dominante.

A data de 25 de março foi muito representativa para os brasileiros do século 19, como elegantemente descreveu Machado de Assis, de um sentimento incipiente de pertencimento a um Estado de Direito, com todas as suas imperfeições.

Em todo o Brasil, há dezenas de ruas nomeadas em honra do aniversário da Constituição de 1824. Em São Paulo, a rua 25 de Março, a mais importante via de comércio popular do país, é uma bela metáfora de que é possível, ainda que por razões insondáveis, a reinvenção simbólica do poder.

JOSÉ ANTONIO DIAS TOFFOLI, 46, é ministro do Supremo Tribunal Federal
OTAVIO LUIZ RODRIGUES JR., 39, é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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