Folha de S. Paulo


Felipe Salto: A pedagogia democrática do Plano Real

"Nada seria secreto. Nós anteciparíamos os principais passos do que iria ocorrer e mostraríamos que se tratava de um processo e não de um ato milagroso. Portanto, haveria que trabalhar com o tempo e tornar o povo partícipe ativo desse processo. (...) Pérsio Arida apresentou a sugestão revolucionária: minimizar as regras e torná-las transparentes. (...) Isso batia com o que eu mais acreditava, a pedagogia democrática".
Fernando Henrique Cardoso
("A Arte da Política - A História que Vivi")

Nesses tempos de comemoração dos 20 anos do Plano Real, o livro "A Arte da Política - A História que Vivi", de Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil entre 1995 e 2002, está entre os documentos históricos mais acessíveis e instigantes aos que vivenciaram a experiência da hiperinflação e, essencialmente, àqueles que não sofreram na pele seus efeitos.

O capítulo "O Plano Real: da Descrença ao Apoio Popular" ajuda-nos a compreender os passos que foram sendo planejados e, pouco a pouco, galgados para que se constituísse um plano consistente, a ser anunciado à luz do dia, sem surpresas e de maneira pedagógica a todos os brasileiros.

O Programa de Ação Imediata (PAI) foi o início de tudo. Havia um diagnóstico de que o problema da inflação desagregava-se em três grandes imbróglios. O primeiro deles era o desajuste fiscal, isto é, a excessiva expansão dos gastos públicos e do endividamento dos governos estaduais e da União. Em segundo lugar, a perda de credibilidade associada à moratória da dívida externa, que afastava o capital estrangeiro do país e enfraquecia excessivamente a moeda nacional. Por fim, a inércia inflacionária –processo que pode ser entendido como a inflação gerada pelos sistemáticos e recorrentes reajustes de preços movidos, sobretudo, pela expectativa das pessoas de que os preços iriam subir.

Ou seja, um mecanismo de defesa quase impossível de ser quebrado por medidas oficiais.

Era preciso, assim, promover medidas de ajuste fiscal que passariam, inicialmente, por explicitar à sociedade o real orçamento público. Em seguida, um programa de controle de despesas seria implementado, levando o país a apresentar, com sorte, estatísticas mais afeitas à austeridade e menos próximas da insolvência.

Entretanto, o programa de ajuste mais ousado não encontrou espaço naquele momento. O que se buscou, sob a liderança do economista Edmar Bacha, foi a ampliação das receitas. Foi assim que se propôs e se aprovou, no Congresso, o Fundo Social de Emergência (FSE). Criou-se, também, o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF).

Além disso, era preciso levar adiante a renegociação das dívidas dos Estados. Isso foi feito já em 1993 com a renegociação dos passivos dos governos estaduais, processo que se consolidou em 1997 com a última renegociação e, em maio de 2000, com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O ajuste fiscal, entretanto, não cessaria com o aumento de receitas da União e o ajuste dos Estados. Era preciso privatizar, uma vez que a venda de empresas estatais elevaria as receitas fiscais e auxiliaria no processo de geração de resultados suficientemente elevados para conter o crescimento da dívida interna.

A renegociação da dívida externa era a quarta e última frente de trabalho. A moratória da dívida, ainda no governo Sarney, legara ao Brasil a perda de credibilidade que acabara por inibir o processo de recuperação da confiança na moeda nacional e, portanto, qualquer esperança de controle da inflação.

Era preciso dar uma solução final à dinâmica de renegociação da dívida junto ao FMI, encarando o problema de forma séria, transparente e corajosa. A solução foi encontrada: o Brasil adquiriu títulos americanos em montantes suficientes para fazer frente à dívida externa, depositando-os no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como garantia às centenas de bancos estrangeiros que detinham papéis da dívida brasileira. Por fim, foi proposto a esses bancos a troca da dívida antiga por dívida nova –menos custosa e mais longa. Ponto para o Brasil.

Ainda que os quatro pilares descritos compusessem a espinha dorsal da mudança que levaria o Brasil à consolidação da estabilização monetária, o curto prazo exigia algo a mais.

A inflação não dava sinais de que cederia. A grande questão passava, agora, pela criação de uma moeda nova, na qual os brasileiros depositassem novamente sua confiança. Qualquer solução teria de promover um controle geral dos preços e, portanto, mudanças na moeda nacional e na sua relação com a moeda de reserva internacional, o dólar americano.

A fixação do câmbio (um único preço a delimitar todos os demais preços da economia nacional) poderia levar à interrupção do processo de reajustes de todos os demais preços. Controlando o câmbio, seria possível ajustar as expectativas dos agentes e devolver confiança à moeda nacional. Mas como fazê-lo sem dolarizar a economia?

A ideia foi criar a Unidade Real de Valor (URV), que serviria para indexar todos os contratos da economia e à qual o dólar seria equiparado. Cada pessoa teria a liberdade para tomar a decisão de continuar associada ao cruzeiro real ou de saltar para a URV. Ocorre que a vantagem de ter seus contratos atrelados a uma moeda virtual (pois tinha a função apenas de unidade de conta, ou seja, não era emitida), que estaria atrelada à própria taxa de câmbio, consistia em um incentivo sem igual. A migração foi maciça.

Depois de quatro meses, quando a sociedade já havia incorporado a URV, o real foi oficialmente criado, passando a ser emitido e a carregar consigo a garantia de que seria uma moeda forte, dada a confiança reconquistada.

A pedagogia democrática do Plano Real foi a sua maior beleza. Na ausência da compreensão e da adoção natural pela sociedade, o real teria vingado? A continuação das reformas preconizadas pelo PAI, a adoção do regime de metas à inflação, a LRF, a renegociação das dívidas dos governos estaduais e a ampliação, com isso, do bem-estar social, teriam ocorrido na ausência desse componente central? Sem o apoio popular, a URV teria sido apenas mais uma tentativa frustrada de resolver o histórico problema da instabilidade monetária.

Os atuais gestores e políticos que comandam nosso país pecam ao não aprender com as experiências do passado recente. Após a conquista da estabilidade monetária, avançamos na distribuição de renda e na redução da desigualdade, mas não fomos capazes de gerar taxas de crescimento econômico condizentes com a nossa condição de economia emergente.

Está na hora de, mais uma vez, buscarmos a concretização de um plano econômico democrático, participativo, tecnicamente bem fundamentado e com um objetivo corajoso: ampliar a igualdade de oportunidades e o bem-estar social pela via do desenvolvimento econômico. A política precisa se reaproximar da sociedade, encontrar as debilidades do atual modelo, ouvi-la e saber construir respostas novas, corrigir os rumos e avançar. Quem muda a nação, no limite, é o povo.

FELIPE SALTO, 27, é especialista em contas públicas na consultoria Tendências e professor de macroeconomia brasileira da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP)

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