Folha de S. Paulo


Mário Roberto Hirschheimer: O direito de morrer com dignidade

A luta pela vida é um dos principais objetivos da medicina. É necessário estabelecer, contudo, um equilíbrio entre tal luta e o dever de aceitar a morte como o destino de todos os seres humanos.

Por isso, os tratamentos médicos devem também possibilitar uma morte com dignidade, sem considerá-la inimiga.

Conceituar um paciente como terminal é tarefa ingrata; só há sentido em fazê-lo em função da conduta que se vai adotar. O conceituaremos aqui como o portador de uma doença em estágio que evoluirá inexoravelmente para a morte, causando sofrimento e sem possibilidades terapêuticas que possam prolongar sua vida com qualidade aceitável. Claro que é imprescindível a análise caso a caso: o conceito jamais poderá ser estático, uma vez que os avanços da medicina estão sempre a modificar os prognósticos

Seria mais fácil tratar a morte como um fenômeno puramente biológico, mas a morte de seres humanos recusa simplificações desta natureza. Aspectos institucionais, jurídicos, sociais, culturais e religiosos insistem em se intrometer e complicar a situação.

Enquanto a medicina predominantemente curativa for o referencial, será difícil encontrar um caminho para o enfrentamento da morte que não pareça desumano e descomprometido com o valor da vida humana. Uma luz importante advém da compreensão do que realmente significa saúde: não uma mera ausência de doença, mas um bem-estar físico, mental e social da pessoa. Quando a estes três elementos se acrescenta a preocupação com o bem-estar espiritual, cria-se uma estrutura que permite a abordagem humana à pessoa no final da vida.

O compromisso com a promoção do bem-estar global dos portadores de doenças incuráveis em sua fase terminal obriga-nos a desenvolver o conceito de ortotanásia (a morte com dignidade), sem cair nas ciladas da eutanásia (morte provocada, visando encurtar a vida e o sofrimento) ou da distanásia (quando se usam todos os recursos disponíveis para postergar a morte, prolongando o sofrimento).

A ortotanásia permite à pessoa que entrou na fase final de sua doença e àqueles que a cercam enfrentar o destino com serenidade. Nesta perspectiva, a morte não é uma doença a prevenir, mas algo que integra a vida. Uma vez aceito este fato, que a cultura ocidental moderna tende a esconder e negar, abre-se a possibilidade de trabalhar a distinção entre cuidar e curar, entre manter a vida enquanto isso for adequado e permitir que a pessoa morra quando sua hora chegar.

O ideal é integrar o conhecimento científico, saber jurídico, a sensibilidade humana e a ética numa abordagem única. Quando se entende que a medicina, a justiça e a economia têm suas ações a serviço do cidadão, depara-se no doente terminal um valor escondido: o respeito à sua autonomia.

Essa pessoa (que se for crianças ainda sem discernimento deve ser representada por sua família) tem o direito de saber tudo a respeito de sua doença. Tem o direito de decidir, de não ser abandonado, o direito ao tratamento paliativo para amenizar seu sofrimento, o direito de não ser tratado como mero objeto cuja vida pode ser encurtada ou prolongada segundo as conveniências da família ou das instituições.

Essas são exigências humanistas que procuram promover o bem-estar global da pessoa em final de vida e, consequentemente, sua saúde enquanto a morte não advém.

MÁRIO ROBERTO HIRSCHHEIMER, médico, é presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo

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