Folha de S. Paulo


Luiz Bolognesi: Água, uma tragédia anunciada

"Meio copo de água é mais caro que a garrafa de uísque escocês. É por isso que a água do aquífero guarani, a maior reserva subterrânea do planeta, já não cai na torneira do brasileiros. É vendida pela Aquabrás a peso de ouro nas plantações de etanol e exportada para o mundo inteiro. Quanto mais diminui a calota polar, mais disparam as ações da Aquabrás. Enquanto isso, o pessoal lá embaixo está bebendo água do mar infectada com lixo industrial."

Esse é o depoimento do jornalista João Cândido na parte final do filme "Uma História de Amor e Fúria". Ele está no alto de um condomínio vertical no Rio de Janeiro em 2.096. O presidente da República, pastor Armando, acaba de declarar que só a fé do povo pode trazer chuva, enquanto um rali é realizado no deserto da Amazônia e um grupo de guerrilheiros explode o braço do Cristo Redentor, exigindo água para todos.

Ouvi algumas vezes que o roteiro do filme seria criativo. Discordo. Infelizmente, ele tem muito mais a ver com pesquisa e capacidade dedutiva do que com criatividade.

Na outra ponta do filme –lá no começo–, ouvimos um pajé conversando com um guerreiro tupinambá na aldeia deles, em frente ao Pão de Açúcar, numa noite de lua cheia. Eles acabam de presenciar a chegada de franceses que se instalaram onde é hoje a ilha do Governador. Os recém-chegados estão propondo ao cacique trocar anzóis por peixes e machados por toras de pau brasil. Ouvimos o pajé dizer: "Essas trocas não nos interessam. Você tem que deter o cacique. Ou esta terra será dominada por Anhangá, o deus das trevas. Florestas vão desaparecer. As águas vão ficar podres e infectadas com o veneno da serpente. Animais e homens vão morrer de sede". O guerreiro tupinambá ouve achando que há certa dose de exagero. Imagina, florestas desaparecerem, água ficar envenenada...

Entre as duas pontas do filme, estamos nós. Eu e você. Hoje. Guerreiros, sem saber. Presenciando nosso próprio definhamento sem nos darmos conta porque desaprendemos a ouvir as vozes do passado. E como diz o jornalista João Cândido, "viver sem conhecer o passado é andar no escuro". Se estivéssemos um pouco mais atentos, minimamente de olhos abertos, deveríamos estar comprometidos até o último fio de cabelo com as campanhas de desmatamento zero e os projetos de recuperação de mata ciliar, áreas de nascentes e recursos hídricos.

Não vi os fazendeiros da soja, cana ou gado refletindo sobre esse problema, que vai arruinar o negócio deles quando o oceano de nuvens que desce da Amazônia parar de dar as caras. Tampouco vi "black bloc" empunhando cartaz sobre o tema.

Mas li neste jornal que quase 150 municípios do Estado estão fazendo racionamento de água e os mananciais estão com níveis perigosamente baixos. Um taxista, essa espécie de pajé que nos cabe, me disse outro dia, de modo lacônico: "Nesse inverno, o pessoal vai se estapear por causa de água". Ai, ai, ai.

Marcelo Cipis

A palavra córrego numa aldeia kraó que visitei designava um pequeno braço de água cristalina que corre sobre um chão de areia branca e quente entre árvores frondosas, onde todos tomam banho na hora do pôr do sol, contando piadas sobre as coisas que aconteceram durante o dia. O que a palavra córrego designa em São Paulo, Rio, Recife ou qualquer outra cidade do país?

Como é possível que a civilização engendrada pelo pensamento científico possa ter desaguado numa ignorância tão assombrosa, enquanto a outra, que preferiu se resguardar no pensamento mítico, conseguiu produzir fartura de proteínas, carboidratos e exuberância metafísica?

Se optamos pela ciência, não deveríamos ao menos fazer uso dela? Cientistas afirmam aos quatro ventos que o regime de chuvas na América do Sul depende do oceano de nuvens que se forma sobre a Amazônia. Não seria prudente para a sobrevivência da nossa espécie adotarmos imediatamente uma política de desmatamento zero? Ou vamos permitir que essa tragédia anunciada seja o futuro dos nossos filhos?

LUIZ BOLOGNESI, 48, é roteirista de "Bicho de Sete Cabeças" e diretor de "Uma História de Amor e Fúria"

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