Folha de S. Paulo


Carlos Frederico da Silva Gama: Os emergentes, a Palestina e a Otan

Fevereiro, 2014. Após a Conferência Internacional de Segurança realizada em Munique, Alemanha, o presidente Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina (AP), fez polêmica proposta. Sugeriu que a presença da Otan nos territórios palestinos garantiria a soberania de facto da Palestina. Ao assumir as funções de um exército nacional em tempos de paz, a Otan dissiparia o ceticismo internacional em relação à capacidade palestina de garantir sua autodeterminação, à medida que negociações de paz com Israel atingem novo impasse.

Em 2013, o secretário de Estado norte-americano John Kerry prometeu reativar as negociações de paz no Oriente Médio. Mesmo assim, a proposta de Abbas foi recebida com cautela. Além das rivalidades internas entre Autoridade Palestina e Hamas (controlador da Faixa de Gaza), a relação entre os Estados Unidos e os palestinos é repleta de idas e vindas. Os palestinos reagiram de forma ambígua aos atentados de 11 de setembro, não demonstrando apoio 'incondicional' à intervenção dos EUA no Afeganistão (feita através da Otan). Quando a Palestina adentrou a Unesco em 2011, os EUA congelaram suas relações com este órgão da ONU. A lenta agonia de Yasser Arafat num prédio em ruínas em Ramallah até seu falecimento é lembrete do desinteresse pela causa palestina que os EUA podem demonstrar.

Convocar a Otan soa ainda mais inusitado se adicionamos à equação o elemento de construção da paz. Complementando (e substituindo) mandatos do Conselho de Segurança da ONU, nos últimos 15 anos forças da Otan protegeram territórios e populações em Kosovo, Afeganistão e Líbia –mas sempre após prolongado e custoso enfrentamento militar, com Slobodan Milosevic, os talibãs e Muamar Gaddafi. Os esforços de construção da paz da Otan carregam marcas de violência –construção de estados via mudança de regime.

Nas entrelinhas, outras questões de relevo emergem da proposta palestina.

É irônico que a proposta tenha sido feita em 2014 - um século após o início da Grande Guerra, 97 anos após o primeiro documento de importância internacional que sugere autodeterminação para as populações na Palestina –a Declaração Balfour.

Se a capacidade palestina de defender sua soberania (nas modestas parcelas de território onde a AP exerce limitada autoridade) depende da Otan, os mesmos poderes que iniciaram o conflito de 1914 –Reino Unido, França, Alemanha, Áustria, Turquia e uma potência emergente do século passado, os EUA– seriam os novos tutores da Palestina.

Essa inusitada nostalgia nos fornece três lições sobre a ordem internacional contemporânea.

Primeiro, na ressaca da Primavera Árabe, a questão palestina perdeu apelo. Confrontadas com desafios domésticos/internacionais, elites políticas do Oriente Médio deixaram a Palestina de lado. As ondas de democracia que o Ocidente esperava se espalhar pela região não vieram, tampouco os bons frutos da Primavera para as negociações entre Palestina e Israel.

Em seguida, as potências emergentes não-pertencentes à Otan (Brics - Brasil, Índia, China, África do Sul e a Rússia, rival histórica da Otan) trouxeram desconforto aos EUA no Oriente Médio, mas não a ponto de modificar substancialmente a questão palestina. À sombra das iniciativas dos emergentes no Irã e na Síria, a proposta de Abbas parece ultrajante –não fossem tímidas as propostas emergentes, em termos militares e de segurança, para a Palestina.

A lenta ascensão dos emergentes pode aumentar os custos do unilateralismo norte-americano e desafiar o multilateralismo pós-Guerra Fria (como visto no bloqueio feito no Conselho de Segurança no caso sírio, em contraste com a aquiescência demonstrada na Líbia). Entretanto, ainda falta aos emergentes trazer à mesa, para além da retórica diplomática, propostas robustas de governança internacional para o Oriente Médio.

Diferenças entre os Brics dificultam essa tarefa. O Brasil reluta em utilizar seus modestos recursos militares em questões de segurança fora das Américas (Haiti) e ex-colônias portuguesas (Timor Leste). China e Índia tampouco demonstram disposição em negociar questões de soberania territorial. Já a Rússia, tentando salvar o regime Assad na Síria, ameaçou utilizar seu poderio militar.

Por fim, décadas após o fim da Guerra Fria e a despeito das diferenças entre União Europeia e EUA, a Otan permanece uma força a ser reconhecida fora do Atlântico. O pedido palestino não apenas mostra desalento com esperanças na Primavera Árabe e países emergentes; confere inesperada legitimidade aos membros da Otan, especialmente quando memórias da Primeira Guerra Mundial trazem tons ambíguos a narrativas nacionais sobre o uso da força e democracia.

A proposta de Abbas parece desesperada, mas é pragmática. Na ausência de alternativas, propostas de viabilidade duvidosa ganham força. Cabe aos emergentes –que não podem se refugiar na nostalgia de 1914 ou nos impasses do status quo– mudar esse quadro. Oportunidade para tal não falta; o Brasil acaba de assumir a liderança da Comissão de Construção da Paz da ONU.

CARLOS FREDERICO PEREIRA DA SILVA GAMA, 35, é professor de relações internacionais da PUC-Rio

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