Folha de S. Paulo


Maria Alice Setubal - O direito ao letramento

"Fui passando, passando, passando e cheguei na quinta série sem saber ler nem escrever. Daí minha mãe me colocou na primeira série de novo, quando eu tinha 11 anos." Essa é a trajetória da Tia Edna, que, mesmo sem abandonar os estudos ou ser reprovada, concluiu o ensino médio apenas aos 22 anos. Hoje, com 39, ela se dedica a dar aulas de reforço para crianças na periferia de São Paulo, a maioria não alfabetizada.

O problema vivido por Tia Edna persiste. A sociedade brasileira ainda não solucionou a desigualdade que afeta, particularmente, territórios vulneráveis como as periferias urbanas e as zonas rurais. É preciso reconhecer as desigualdades que marcam o acesso à língua escrita e às práticas de letramento no Brasil.

Apenas 1 em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. Da população de 15 a 64 anos, 27% é analfabeta funcional --a proporção de analfabetos funcionais na área rural é de 44% e de 24% nas áreas urbanas. Um em cada 4 brasileiros que cursaram até o ensino fundamental 2 tem nível rudimentar de alfabetismo e somente 35% dos brasileiros com ensino médio completo podem ser considerados plenamente alfabetizados (Indicador de Alfabetismo Funcional 2011/2012).

O conceito de letramento é uma evolução do termo alfabetização. Busca responder à complexidade das demandas de conhecimento atuais, incluindo as novas mídias e linguagens. Letramento designa as diferentes práticas de leitura e escrita nos diversos domínios da vida social como o trabalho, a família e a escola.

Mesmo considerando a história de superação de tantas Tias Edna, os alunos das escolas públicas não deveriam precisar de aulas de reforço particulares. A escola é a instituição que trabalha intencionalmente o ensino da leitura e escrita. É, portanto, sua responsabilidade garantir o letramento da população, para que o indivíduo usufrua das oportunidades da sociedade contemporânea. Para isso, é necessário fortalecer o papel do professor, peça-chave para assegurar o letramento do aluno, investindo em sua formação continuada.

Mais que condição "sine qua non" para que as crianças dominem os demais aprendizados e competências e avancem na escolarização, o letramento é um direito humano. Condição que potencializa o exercício da cidadania, contribui para a formação individual e a autonomia.

A sociedade globalizada demanda cidadãos que pensem globalmente e atuem localmente. Cidadãos capazes de fazer uma leitura de mundo e contribuir para a sustentabilidade do planeta.

A escola tem que ser eficaz em seu papel fundamental de garantir o direito ao letramento, estimulando o acesso às novas práticas originadas pela cultura digital. Só assim conseguiremos avançar na construção da nação que desejamos neste século 21 --uma sociedade que, além de economicamente desenvolvida, seja socialmente justa e sustentável.

Em tempo: Tia Edna é o nome fictício de uma entrevistada na pesquisa Educação em Territórios de Alta Vulnerabilidade Social na Metrópole, coordenada pelo Cenpec, em 2012.

MARIA ALICE SETUBAL, doutora em psicologia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é presidente dos conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e da Fundação Tide Setubal


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