Folha de S. Paulo


João Massud Filho: A agonia da pesquisa clínica no Brasil

Em 1996, o Conselho Nacional de Saúde deu um passo à frente ao fixar diretrizes para a condução ética das pesquisas com seres humanos. No entanto, desde então, a comunidade científica tem manifestado sua preocupação com a burocracia e o viés ideológico e científico que pautam a agenda da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

Em diversas ocasiões, buscou-se o diálogo franco. Sistematicamente, ouvia-se o mesmo discurso preparado tal qual serviço de atendimento ao consumidor sem que nada se resolvesse.

Após 15 anos de lutas, parecia haver uma luz no final do túnel com a publicação da consulta pública feita pelo Ministério da Saúde sobre o tema. A receptividade foi incomum. Foram quase 2.000 sugestões, que, em sua essência, buscavam simplificar o processo de aprovação das pesquisas clínicas sem, contudo, infringir conceitos éticos.

No entanto, o Conselho Nacional de Saúde descartou a maioria das sugestões e apresentou nova resolução, que acaba de ser publicada. No fundo, é mais do mesmo. Não muda o essencial.

Com essa atitude, houve nítido enfrentamento ao processo democrático que a consulta pública trouxera e um desrespeito a todos aqueles que se manifestaram.

A presidenta Dilma Rousseff defende ardentemente o Ciência sem Fronteiras e a inovação. Mas a atitude do Conselho Nacional de Saúde praticamente inviabiliza o desenvolvimento da pesquisa acadêmica e especialmente aquela voltada a novos medicamentos.

A indústria farmacêutica mundial investe mais de US$ 80 bilhões em pesquisa e desenvolvimento, anualmente. O Brasil é a sexta economia e um dos dez maiores mercados farmacêuticos do mundo. Assim, justo seria imaginar que pudéssemos receber uma percentagem significativa daquele investimento e não míseros números inferiores a 1%.

A razão do disparate é a falta de uma agenda comum de interesses entre governo, indústria, pesquisadores e academia, a exemplo do que a Coreia do Sul fez brilhantemente. A área econômica do governo reclama do deficit na balança comercial referente a farmoquímicos. Se fôssemos pensar só pelo lado econômico, poderíamos zerar o deficit com a vinda de 10% do investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos.

A indústria nacional se ressente da burocracia que dificulta o processo de inovação e pesquisa de novos fármacos. Do ponto de vista humano, há de se lembrar que milhares de pacientes são prejudicados pela falta de pesquisas clínicas com novos medicamentos, que muitas vezes são sua última esperança.

Lamentavelmente, os mais pobres são as principais vítimas. Os demais podem buscar ajuda em outros países, como aconteceu com o ex-vice-presidente José Alencar, que se deslocou a Houston para participar de um estudo experimental para o tratamento do câncer. Aqui no Brasil, provavelmente um cidadão comum morreria antes das aprovações ética e regulatória, sem a menor chance de recorrer.

A insensibilidade do Conselho Nacional de Saúde faz com que as manifestações de dezenas de sociedades médicas e de pesquisa se tornem um grito no deserto sem eco. A dicotomia entre os programas federais de inovação e o posicionamento do Conselho Nacional de Saúde faz lembrar o presidente De Gaulle quando, diz a lenda, questionava se o Brasil não era um país sério.

JOÃO MASSUD FILHO, 64, médico e professor, é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica


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