Folha de S. Paulo


André Ramos Tavares e Bruno Dantas: Bicameralismo só no papel?

Uma proposta de emenda constitucional (PEC), quando aprovada, deve ser diretamente promulgada pelas mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, não tendo participação o Poder Executivo.

A PEC 544/02, que cria quatro tribunais regionais federais, foi recentemente aprovada por ambas as Casas. Mas ela deve ser promulgada de imediato? E por quem?

Diferentemente dos projetos de lei, o processo das PEC's envolve a discussão e votação em dois turnos na Câmara e no Senado, separadamente, considerando-se aprovadas se obtiverem, em cada uma, o voto de três quintos dos congressistas. Para isso, é indispensável que o mesmo texto seja chancelado por ambas as Casas. Havendo alteração, deve retornar à outra para novo exame, tantas vezes quantas necessárias.

Esse processo legislativo relativamente simples, contudo, esconde duas questões complexas. Primeiro, é preciso esclarecer se a aprovação de emendas estritamente de redação por uma Casa imporia a devolução da proposta à outra. Ora, qualquer mudança, ainda que meramente de redação, significa alterar o texto original e, por isso, em princípio, sua ocorrência deveria resultar no retorno da proposta à Casa de origem. Ocorre que, por antiga interpretação da mesa do Senado e da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara, apenas as "emendas de mérito" reabrem o processo legislativo. A validade dessa modelagem foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em inúmeros precedentes.

Admitindo-se, pois, que as emendas meramente de redação dispensam reexame da outra Casa, cabe a pergunta: a quem compete o juízo de definir se uma alteração é meramente redacional ou de mérito?

A situação não é nova. Na promulgação da reforma do Judiciário, em 2004, o Senado aprovou emenda, que entendeu ser redacional, sobre designação dos magistrados federais de segunda instância, e substituiu a expressão "juízes de tribunal regional federal" por "desembargadores federais" -uma mudança claramente de estilo. Mas a Câmara se recusou a promulgar tal dispositivo, alegando ser emenda de mérito. Não houve contestações.

Já na tramitação da PEC dos Vereadores, em 2009, o Senado adotou emendas que também considerava ser estritamente de redação, e novamente a Câmara interpretou-as como alterações substanciais e se recusou a promulgar o texto. Em mandado de segurança assinado pelo presidente do Senado contra essa posição, o STF indeferiu a liminar, em decisão do ilustre ministro Celso de Mello, resguardando nosso bicameralismo.

Denota-se que, se uma Casa aprova emenda designando-a como redacional, a outra tem o poder de examinar essa qualificação. Negar-se esse poder na fase final (pré-promulgação) poderá significar a violação do modelo bicameral do Poder Legislativo.

No caso da PEC 544, a Câmara introduziu modificações -não meras correções gramaticais- no texto original aprovado pelo Senado. Neste momento, apenas a mesa do Senado detém o poder político para decidir se a alteração da Câmara é de mera redação ou de mérito. Se, por alguma razão, disso resultar controvérsia, o STF poderá ser provocado.

ANDRÉ RAMOS TAVARES é professor de direito constitucional e Poder Judiciário e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais
BRUNO DANTAS é conselheiro nacional de Justiça e ex-consultor-geral do Senado

*

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Endereço da página:

Links no texto: