Folha de S. Paulo


Boaventura de Sousa Santos: O "Diktat" alemão

Provar que há alternativas ao "Diktat" alemão do nacional-austeritarismo (austeridade em vez de crescimento econômico) é o maior desafio que as sociedades europeias hoje defrontam.

A história europeia mostra de maneira muito trágica que não é um desafio fácil. A razão alemã tem um lastro de predestinação divina que o filósofo Fichte definiu bem em 1807, quando contrapôs o alemão ao estrangeiro desta forma: o alemão está para o estrangeiro como o espírito está para a matéria, como o bem está para o mal.

Perante isso, qualquer transigência é sinal de fraqueza. O próprio direito tem de ceder à força para que esta não enfraqueça.

Quando a Alemanha invadiu e destruiu a Bélgica (1914), sob o pretexto de se defender da França, violou o direito internacional, dada a neutralidade daquele pequeno país.

Sem qualquer escrúpulo, o chanceler alemão declarou no Parlamento: "A ilegalidade que praticamos havemos de procurar reparar logo que tivermos atingido o nosso escopo militar. Quando se é ameaçado e se luta por um bem supremo, cada qual governa-se como pode".

Essa arrogância não exclui alguma magnanimidade, desde que as vítimas se portem bem. Da nota que a chancelaria alemã enviou à chancelaria belga em 2 de agosto de 1914 --documento que ficará na história como um monumento de mentira e felonia internacionais-- constam duas condições que rezam assim:

"3) Se a Bélgica observar uma atitude benévola, a Alemanha obriga-se, de acordo com as autoridades do governo belga, a comprar contra dinheiro contado tudo quanto for necessário à suas tropas e a indenizar quaisquer danos causados na Bélgica pela tropas alemãs";

"4. Se a Bélgica se comportar de modo hostil às tropas alemãs e se, especialmente, levantar dificuldades à sua marcha... a Alemanha será obrigada, com grande desgosto, a reputar a Bélgica como inimiga."

Ou seja, se os belgas se deixassem instrumentalizar pelos interesses alemães, o seu sacrifício receberia uma hipotética recompensa. Caso contrário, sofreriam sem dó nem piedade. A Bélgica decidiu não ser boa aluna e pagou elevado preço: uma agressão tão vil que ficou conhecida como a "violação da Bélgica".

Dada essa superioridade "über alles", humilhar a arrogância alemã tem sempre envolvido muita destruição material e humana, tanto dos povos vítimas dessa arrogância como do povo alemão.

Claro que a história nunca se repete e que a Alemanha é hoje um país sem poder militar e governado por uma vibrante democracia. Mas três fatos perturbadores obrigam os restantes países europeus a tomar em conta a história.

Primeiro, é perturbador verificar que o poder econômico alemão está hoje convertido em fonte de uma ortodoxia europeia que beneficia unilateralmente a Alemanha, ao contrário do que esta quer fazer crer.

Também em 1914 o governo imperial pretendia convencer os belgas de que a invasão alemã do seu país era para seu bem e que "o governo alemão sentiria vivamente que a Bélgica reputasse [a invasão] como um ato de hostilidade".

Veridiana Scarpelli

Segundo, são perturbadoras as manifestações de preconceito racial em relação aos países latinos na opinião pública alemã. Vem à memória o antropólogo racista alemão Ludwig Woltmann (1871-1907), que, inconformado com a genialidade de alguns latinos (Dante, Da Vinci, Galileu, etc.), procurou germanizá-los.

Conta-se, por exemplo, que escreveu a Benedetto Croce para lhe perguntar se Giambattista Vico era alto e de olhos azuis. Perante a negativa, não se desconcertou e replicou: "Seja como for, Vico deriva evidentemente do alemão Wieck".

Isso tudo soa hoje ridículo, mas vem à memória sobretudo tendo em mente o terceiro fato perturbador.

Um inquérito recente aos alunos das escolas secundárias alemãs revelou que um terço não sabia quem fora Hitler e que 40% estava convencido de que os direitos humanos tinham sido sempre respeitados pelos governos alemães desde 1933.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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