Folha de S. Paulo


Juca de Oliveira: Pela generosidade espontânea

É do ponto de vista de quem faz teatro profissional há mais de 50 anos que posso me manifestar.

O teatro é o mais pobre e carente dos espetáculos. E para complicar, temos os políticos, criaturas magnânimas e solidárias --desde que suas benesses se façam com o dinheiro e o sacrifício alheio.

Portanto por que não uma demagogiazinha para ganhar votinhos de estudantes? Por que não criar uma lei para que os atores sejam obrigados a cobrar apenas meia entrada de todo cidadão que estude, ou dos jovens de baixa renda?

Em todas as produções de que participei, fizemos sessões a preços populares (a nossa meia-entrada) por semanas ou meses, para lançar o espetáculo ou mantê-lo em cartaz.

Fizemos ensaios abertos, promoções para estudantes de todos os níveis, comerciários, operários, ingressos até 90% mais baratos, vendas em ginásios, colégios, faculdades, cursinhos, fábricas, clubes e associações de bairro.

Por que o ator faz teatro? Fazemos teatro para melhorar o homem, torná-lo mais ético, mais íntegro, menos corrupto, menos predador e, sobretudo, mais solidário. A nossa meia-entrada é confraternização, é a natureza do nosso trabalho.

Portanto, apesar de a bilheteria ser a fonte de sobrevivência do ator e do autor ao longo dos séculos --Shakespeare já escrevia com os dois olhos na caixa registradora--, a meia-entrada vem de longe, de bem antes da inspiração dos políticos...

O curioso é que, ao impingir a atual meia-entrada, eles extinguiram a meia-entrada, punindo a generosidade de séculos, enquadrando a alma do teatro nos limites gelados de leis, advertências e punições eventuais. Como se fôssemos personagens de licitações públicas.

A meia-entrada imposta engendrou algo desconhecido no teatro até então, ou seja, a quase extinção da empatia, a identificação mágica ator-espectador; criou-se a suspeita de que o palco, sempre pobre e deficiente, poderia estar lesando a plateia, ou a plateia lesando o palco. Ou os atores mentindo sobre a lotação do teatro ou os estudantes falsificando credenciais, ou o teatro elevando os preços dos ingressos pra sobreviver aos custos.

Ora, o estudante, o jovem, sempre foi prioridade para nós, por ser ele a base essencial na formação de plateias e elevação cultural.

Porque, acima de tudo, aprendemos com os jovens! O artista só avança se for capaz de se reciclar por meio do jovem. A arte é jovem. Precisamos dos jovens.

Vamos encarar a coisa como ela é. A meia-entrada, por força da lei, é algo absurdo; ela só deveria ocorrer no caso de concessões públicas, como o transporte, por exemplo.

Nós do teatro, a mais pobre e frágil das artes do espetáculo, concedemos a meia-entrada, como sempre fizemos, sem a instrumentalização do Estado, porque esse intercâmbio é o espirito do teatro e a razão da sua sobrevivência. Então por que esse tipo de intromissão política?

Esse procedimento me leva à uma pergunta óbvia: se a magnanimidade dos parlamentares foi tão objetiva e direta ao invadir nossas parcas bilheterias, por que ela não é extensiva às necessidades essenciais, além do espetáculo teatral?

Por que não "meia-consulta médica", "meio-pãozinho de queijo", "meia-cesta básica" nos supermercados? "Meia-cerveja" nos botequins, que afinal ninguém é de ferro! "Meio-carro", "meia-moto" para o estudante se safar da tragédia dos congestionamentos?

E, finalmente, para cimentar o elevado desprendimento do nosso político em favor do cidadão comum, por que não o "meio-salário parlamentar"?

JUCA DE OLIVEIRA, 78, é ator e dramaturgo

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