Folha de S. Paulo


Paulo Daniel Farah: O Iraque não cede à desesperança

Dez anos após a invasão do Iraque, os danos provocados ao país ainda ameaçam esse patrimônio cultural da humanidade, embora sua história, da Mesopotâmia aos dias atuais, confirme a resiliência de seu povo.

Além da inaceitável perda de centenas de milhares de vidas humanas e da infraestrutura arrasada no rastro de uma intervenção militar desastrosa, prevalece à superfície um cenário de desagregação, acirramento de tensões identitárias e dificuldades na promoção de um diálogo nacional.

Jalal Jamal Chaya e Wathiq Hindo: Iraque, terra de oportunidades

Por milênios, diferentes tradições misturaram-se num processo de enriquecimento mútuo; agora, o espectro dos sectarismos ensombrece a região. Referência cultural nos anos 1970, o Iraque abriga milhares de sítios arqueológicos que foram submetidos à pilhagem e ao contrabando, junto com toda uma memória coletiva humana.

Desde o embargo, e sobretudo a partir de 2003, houve saques sistemáticos e organizados ao patrimônio material iraquiano que colocam em risco grave a história da humanidade. Menos de duas semanas após a invasão norte-americana, muitas dessas obras já se encontravam nos Estados Unidos e na Europa, como afirma o arqueólogo sírio Ahmad Serrie.

Ele ministrará palestra em São Paulo e em Campinas na próxima semana, no âmbito do Festival Sul-Americano da Cultura Árabe (que traz ainda outras ações vinculadas ao Iraque), a respeito de mecanismos de tentativa de preservação de sítios arqueológicos em situações de conflito, com ênfase nos exemplos do Iraque e da Síria.

Serrie, que foi chefe de delegações arqueológicas no Iraque e na Síria, além de diretor do Departamento de Museus e Antiguidades, responsável por supervisionar todos os sítios arqueológicos do país, argumenta que, "antes da ocupação do Iraque, havia uma preocupação em preservar essa riqueza, mas depois se perdeu o controle em meio aos conflitos, o que demanda urgência".

Na epopeia babilônica de Gilgamesh, uma das primeiras obras da literatura mundial, o herói homônimo busca obter a vida eterna até encontrar o ancião Utnapishtim, que havia sobrevivido a um dilúvio. Utnapishtim se compadece de Gilgamesh e lhe oferece uma planta mágica que restaura a juventude. A planta é roubada, porém, em uma demostração da limitação e impermanência da condição humana.

Herman Tacasey/Folhapress

Apesar do quadro de fragilidade, tal como Gilgamesh, o Iraque não cedeu à desesperança; foi palco de algumas das mais expressivas realizações humanas em áreas como a agricultura, a urbanização, a jurisprudência, a matemática e a astronomia. Com efeito, a perseverança caracteriza a postura dos iraquianos no passado e hoje.

Uma notícia que desperta esperança refere-se ao reavivamento da Bayt al-Hikma (Casa da Sabedoria), em referência ao centro de tradução e produção científica fundado em Bagdá pelo califa Mamun al Rachid (813-833). Esse projeto traduziu tratados do grego, sânscrito, siríaco e persa, entre outros idiomas, para o árabe e renovou todo o conhecimento científico --algumas dessas obras sobreviveram apenas em árabe.

A Bayt al-Hikma está retomando as atividades na área de publicação e outras, algumas em parceria com o Brasil, promovidas pela embaixada em Bagdá.

Como se sabe, os laços com o Brasil são históricos. O primeiro relato de viagem acerca do Brasil sob o prisma de um árabe e muçulmano foi escrito no século 19 por um erudito de Bagdá, Abdurrahman bin Abdullah al Baghdadi.

O respeito às culturas africanas e indígenas que seu relato traz revela uma atitude humanista. Ela pode servir de inspiração para que a América do Sul participe desse processo de apoio ao Iraque, em um momento de vulnerabilidade que demanda esforços concentrados e ações concretas.

PAULO DANIEL FARAH, 41, especialista em estudos árabes e islâmicos, é professor da USP e diretor da BibliASPA, a Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul-Países Árabes

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